Artigo Revista Arte & Ensaios 33, 2017

INTERNACIONALIZAÇÃO DA ARTE BRASILEIRA A PARTIR DOS ANOS 80 E A CONSTRUÇÃO DE HÉLIO OITICICA E LYGIA CLARK COMO REFERENCIAIS CANÔNICOS DESSA PRODUÇÃO ARTÍSTICA.

In: Revista Arte & Ensaios 33, 2017

Divulgação/Jornal O Globo

https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/11081/8690

 

Casa Daros: Ficción y Fantasía em uma metrópole tropical

Marta María Pérez Bravo. “No zozobra la barca de la vida”, 1995
Marta María Pérez Bravo. “No zozobra la barca de la vida”, 1995

Quando a Casa Daros chegou no Rio, em 2007, o então diretor de arte-educação e pesquisa, o cubano Eugênio Valdés, afirmava que o projeto enfatizaria o lado pedagógico da arte, entendida como necessária para a formação e integração humana. O programa da futura instituição teria residências, intercâmbios, ateliês, cursos e seminários, além de exposições da coleção Daros Latinoamerica, o maior acervo privado de arte contemporânea latinoamericana na Europa, pertencente à milionária suíça Ruth Schmidheiny. Diante do nosso cenário institucional pobre e engessado, a Daros seria uma instituição de alto nível com programação de qualidade e oportunidades para o ensino artístico e a profissionalização do meio.

Durante 6 anos de reformas, a Casa Daros, sob a tutela de Valdés, fez boas atividades sócio-educativas e artísticas a portas fechadas, até inaugurar em 2013 com ênfase no programa de arte e educação, que envolveu e preparou bons profissinais do ramo, tendo realizado diferentes atividades públicas. Em menos de 3 anos foram realizadas algumas mostras, todas com curadoria do suíço Hans Michel Herzog, e encerraram-se de sopetão as atividades do espaço sob argumentos do Conselho administrativo da coleção, que contradizem o discurso pedagógico do início. Ao invés de uma ação edificante, o que se viu foi um incrível desinteresse repentino em investir socialmente na região que intitula a coleção: a América Latina.

Sequer a biblioteca, com 7mil títulos, em parte espelhada na original suíça, ficará. Por exigências de eficiência na catalogação e pronta visibilidade pública, o Conselho doará o acervo inestimável ao Metropolitan Museum de Nova Iorque, em um gesto de desrespeito com estudantes, artistas, pesquisadores e públicos latinoamericanos. Se a Sra. Schmidheiny desejasse, não teria problemas em montar – e por que não manter? – um pioneiro centro de referência em arte contemporânea latina no trópico. Mas isso não ocorreu e, ironia, o colégio de elite previsto para ocupar o casarão desprezou a chance de ter os livros. Assim, seguimos obrigados a recorrer aos EUA e Europa para pesquisarmos profundamente nossos processos culturais, tão marcados pela mão colonizadora.

A ótima coleção de arte, construída pelo curador Hans Michel Herzog, tem conjuntos de Antonio Dias, Ana Mendieta, Los Carpinteros, Luiz Camnitzer entre outros, cujas poéticas engajadas, conceituais e contundentes não têm empatia com a atitude irresponsável da Sra. Schmidheiny e seu Conselho.

Desmontada como um negócio caro, a Casa Daros não cumpriu seu papel, apesar dos esforços de todos os profissionais de alto nível que estiveram envolvidos. Com a desaparição da biblioteca, em pouco tempo a luxuosa instituição será lenda urbana: uma empreitada excêntrica e colonialista, insustentável, que poderia ter gerado grandes frutos no mundo. Seu legado sócio-cultural será apagado logo, restando alguns bons eventos e  exposições nem sempre boas, na memória de quem viu.

*Publicado em Jornal O Globo, Segundo Caderno, 11/12/2015.

 

Marco Paulo Rolla – Cotidiano Radical

Pic Nic. Foto: Marco Paulo Rolla
Pic Nic. Foto: Marco Paulo Rolla

A Caixa Cultural, no Centro do Rio, exibe a primeira individual do mineiro Marco Paulo Rolla, um nome importante para a arte brasileira contemporânea, em especial aquela que explora a interdisciplinariedade entre distintos campos artísticos. No caso deste artista, sua atuação variada pode ser compreendida como multimídia, uma vez que sua poética é construída sobre diversos suportes e linguagens, da escultura à performance, da pintura e desenho ao vídeo-registro.

“Cotidiano Radical” tem curadoria da pernambucana Cristiana Tejo, e reúne trabalhos realizados entre 1990-2005 – contando com a reencenação da performance “Café da Manhã”(2001-2015) na abertura, deixando o visitante curioso em saber quais caminhos artísticos foram tomados por Marco Paulo recentemente. No entanto, o conjunto apresentado é de grande beleza plástica e profundidade existencial/conceitual, sendo exibido de modo coerente e bem montado, capaz de driblar o problemático chão de pedra da galeria, muito chamativo, que frequentemente interefere no ambiente das exposições ali colocadas.

A mostra tem trabalhos raros como colagens fotografadas em preto e branco do início dos anos 90, e as pinturas e colagens sobre tela da mesma época, como “A Batedeira” (1991), de visualidade Kitsch e Pop, possuidoras da verve humorada, ácida e melancólica do artista, cuja atuação se destaca no meio da performance arte, também como curador e professor. Nas palavra da curadora, “a ambiência da obra de Marco Paulo Rolla é inspirada no barroco: cores quentes, dramaticidade, luz…”.

De fato, as obras selecionadas transmitem tanto o lado barroco da obra de Rolla como uma sensação de quase-escatologia e escárnio presentes nos registros da performance “Canibal” (2004) e nas instalações com porcelana e elementos orgânicos reais, como “Pano de Mesa” ou “Pic Nic”, ambas de 2000. Na primeira, uma realista toalha de mesa em porcelana está encharcada de vinho verdadeiro entornado desde uma taça, enquanto que na outra detalhes como cascas e restos de tangerina em porcelana disputam, sobre uma toalha também em cerâmica, a realidade da cena com cebolas reais e mais vinho – que apodrecem enquanto as esculturas permanecem frescas. Marco Paulo Rolla propõe um diálogo entre vanitas e a perenidade da matéria inerte, em esculturas constituídas de objetos do mundo, biscuit e alimentos como geléia, que reproduzem eventos passados cuja visualidade e temática são inspiradas nas naturezas-mortas de mestres da pintura. As peças confundem a percepção ganhando corpo no imaginário do público, e se colocam como reflexão sobre os limites da representação e da ficção na vida ou na arte. Para além de discutir os suportes e materiais que utiliza Rolla discute o tempo de duração das coisas, e estampa “uma ironia e uma crítica ao fetiche capitalista do consumo”, segundo Cristiana.

“Cotidiano Radical” comenta lírica e criticamente o banal das nossas rotinas cansativas e aparentemente sem sentido. A mostra é um todo coeso, com trabalhos cheio de detalhes a serem explorados. Não há excesso nem falta de assunto, trata-se de uma individual redonda, fruto de uma parceria entre uma curadora e um artista conhecidos pelo cuidado com que levam à público suas produções.

Canibal Foto Ding Musa
Canibal. Registro de performance. Foto: Ding Musa

Publicado em Jornal O Globo, Segundo Caderno, Novembro de 2015.

Um Canto, Dois Sertões: Bispo do Rosário e os 90 Anos da Colônia Juliano Moreira

Casaco bordado por Artur Bispo do Rosário. S/d. Foto: Wilton Moltenegro
Casaco bordado por Artur Bispo do Rosário. S/d. Foto: Wilton Montenegro

A cidade do Rio de Janeiro é uma das capitais com mais instituições artísticas do país, sejam elas de natureza privada-pública ou apenas pública, com portes e programações diversas, algumas com objetivos bem singulares. Em muitos bairros cariocas, centros culturais e museus pequenos em condições precárias representam o único meio de contato de milhares de habitantes com obras de arte. O Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea, na Colônia Juliano Moreira, pertencente à prefeitura, é uma dessas instituições com parcos recursos e ambiciosa missão, cuja importância vai além do seu espaço expositivo. Batizado com o nome do ex-interno em 2000, 11 anos após a sua morte, o espaço abriga a obra plástica de Bispo, e é um pólo de cultura e memória único, instalado em uma região carente de opções culturais que vem sofrendo mudanças profundas com a urbanização impulsionada pelas Olimpíadas.

Em 2002 o Museu Bispo do Rosário teve agregado “Arte Contemporânea” em seu nome e hoje estabelece parcerias externas, contando com uma reduzida equipe para desenvolver projetos que trabalhem “questões básicas sobre a importância do acervo de Bispo, o público-alvo, a acessibilidade e as articulações que Bispo pode fazer, por meio da arte, com diversos campos do saber, como a saúde mental, a psiquiatria, a antropologia”, de acordo com a diretora Raquel Fernandes. Atualmente o curador e ex-diretor do Centro Cultural São Paulo, Ricardo Resende, cuida do extraordinário legado abrigado na instituição, ao mesmo tempo em que novas exposições de arte contemporânea que dialogam com o acervo e a memória da Colônia, começaram a ser desenvolvidas por curadores convidados, através de financiamentos oriundos de editais.

Assim surgiu a atual exposição em cartaz até Fevereiro de 2016, Um Canto, Dois Sertões: Bispo do Rosário e os 90 Anos da Colônia Juliano Moreira, com curadoria de Marcelo Campos. A mostra reúne 150 peças de Bispo do Rosário a outras 50 obras de dez artistas contemporâneos como Efrain Almeida, Caio Reisewitz, Marta Neves e Lin Lima, e ocupa diversos espaços do prédio que foi sede administrativa do complexo, como um antigo refeitório e o saguão de entrada. Entre peças do acervo e projetos específicos para a ocasião, o projeto comenta os dois universos centrais na vida de Bispo: a Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, onde viveu por cinquenta anos, e Japaratuba, em Sergipe, sua cidade natal, que seriam, na concepção de Campos, “os dois ‘sertões’ de Bispo do Rosário”.

Atravessar a cidade ou a Zona Oeste para visitar o Museu e esta exposição é uma oportunidade para adentrar no universo delirante e poético de Bispo do Rosário e ver possibilidades de interação de sua obra com a produção artística atual. Além disso, a visita nos faz ler um capítulo da história social do Brasil moderno, marcado pela exclusão e preconceito simbolizados nos antigos complexos manicomiais que se tornariam campos de concentração de doentes mentais em muitos países. Embora a exposição não toque especificamente neste ponto, obras como a do baiano Willyams Martins, que recria metaforicamente a cela de Bispo do Rosário utilizando-se de decalques das paredes de pavilhões desativados na Colônia, nos dão uma dimensão do sofrimento e clausura experimentados lá. Ao mesmo tempo, é também possível fazer um passeio até a cela que abrigou Bispo por anos, no pavilhão que ainda resiste, vazio, para ter ainda mais noção das tétricas experiências vividas pelos internos, cuja dor poucos conseguiram transmutar em criação artística, como fez Artur Bispo.

Em meio a gentrificações e glorificação da indústria cultural, o Museu Bispo do Rosário é uma resistência. A Colônia, hoje em processo de desativação, vê sua área antes rural se tornar urbe e a paz ainda reinante ser cortada pela futura via expressa Transolímpica. Se os ventos do progresso são inevitáveis, que estes então ajudem este espaço cultural a se tornar mais conhecido e estruturado, dando ao legado de Artur Bispo do Rosário, exposto até na 55a Bienal de Veneza, o cuidado que merece e à população um Museu de qualidade.

Publicado em Jornal O Globo, Segundo Caderno, Outubro de 2015.

Opinião 65: 50 anos depois

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Wesley Duke Lee. Déc. de 60. Foto: Sérgio Guerini

Há exatos 50 anos, entre 12 de agosto e 12 de setembro de 1965, o Bloco Escola do Museu de Arte Moderna recebia a exposição “Opinião 65”, idealizada pelo marchand Jean Boghici com a organização da crítica Ceres Franco. A coletiva reunia 29 artistas entre brasileiros, europeus e argentinos, incluindo jovens que representavam uma nova linha de frente estética, conceitual e política nas artes do país. O evento exibia obras contestatórias viscerais como as assemblages de Antonio Dias aos 21 anos, as peças irônicas e politizadas de Rubens Gerchman e o inédito – hoje icônico – Parangolé de Hélio Oiticica, entre outros que delineavam a vanguarda de então.

Para comemorar o meio século deste acontecimento, a Pinakotheke Cultural, em Botafogo, traz a mostra “Opinião 65: 50 anos depois”, sob a curadoria de Max Perlingeiro, procurando resgatar a memória e o clima de experimentação e engajamento plástico que se instaurava no momento, em diálogo com processos artísticos e discussões nas artes pelo mundo, em torno de uma nova figuração. A exposição conta com 59 obras, sendo 17 trabalhos que estiveram na mostra original, e apresenta vídeos-documentários (um deles feito especialmente para esta ocasião) e fotografias, réplicas de manuscritos de Oiticica e textos de jornais entre outros documentos. Embora o local seja algo sofisticado demais para transmitir com contundência o ambiente de ruptura evocado em 1965, os trabalhos expostos, datados da década de 1960, se mantiveram pulsantes em sua força plástica e verve política, causando surpresa quando relembramos da censura que começava a reinar por estas praias naqueles tempos pós-Golpe Militar. Afinal, apesar de antigas, no fundo são obras de jovens artistas preocupados em discutir sua sociedade e o que entendiam como arte contemporânea há 50 anos.

Perlingeiro esteve 1 ano dedicado à pesquisa e o resultado é um conjunto de trabalhos significativos para a compreensão não apenas de um fato, mas de um momento histórico do país e nossa tenra história da arte. Além dos já citados, vêem-se obras raras de Gastão Manoel Henrique, Waldemar Cordeiro, Wesley Duke Lee, Juan Genovés, Ivan Serpa e outros. A museografia traz detalhes como fragmentos de textos críticos da época plotados ao lado das obras, que contextualizam o modo como era recebido criticamente o artista. Estes e demais elementos dão o cenário de outrora e fazem a visita instigante, ainda que só uma parte dos trabalhos expostos tenha de fato participado de “Opinião 65”.

“Opinião 65: 50 anos depois” tem desdobramento no MAM curado por Luis Camillo Osório, com obras dos anos 1960 do acervo do Museu e da Coleção Gilberto Chateaubriand, incluindo três peças presentes no evento original. O MAM tem natural afinidade com a exposição, acolhendo em casa os bons trabalhos históricos, e a seleção traz peças bastante vistas como as de Gerchman e Roberto Magalhães, e outras potentes e menos conhecidas como “Objeto Popular” (1966), de Pedro Escosteguy. Além disso, os documentos de época, em especial críticas e resenhas de jornais, e uma seleção de cartazes de filmes dos anos 1960, da coleção da Cinemateca, são ponto alto. Em ambos os locais é possível assistir ao breve documentário realizado pela Pinakotheke Cultural, contudo no MAM as condições acústicas são menos favoráveis. Um destaque é o filme “Vida Pública” (1967), com roteiro de Escosteguy, onde se assiste a cena e a discussão de artes de então. “Opinião 65: 50 anos depois”, em seus dois blocos, é uma mostra de cunho histórico sobre os passos da Nova Objetividade brasileira, e faz refletir acerca das relações entre arte, experimentação e engajamento ontem e hoje.

Porta Estandarte de Hélio Oiticica com passista da mangueira, 1965. Arquivo Projeto HO
Bandeira-estandarte de Hélio Oiticica com passista da mangueira, 1965. Arquivo Projeto HO

 

 

Inhotim 13 anos depois

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Escultura de Marepe e galeria ao fundo, em Inhotim.

Inhotim é um complexo de arte contemporânea e paisagismo em Minas Gerais, considerado um dos mais espetaculares museus ao ar livre do mundo. Possui dezenas de pavilhões únicos com obras de expoentes artísticos nacionais e internacionais, rodeados por uma flora exuberante e bem-cuidada. Tudo é arte no parque de 140 hectares com mais de mil espécies de plantas, e harmônicas intervenções arquitetônicas e artísticas. Requintes como os bancos-troncos de Hugo França espalhados sob árvores, e um lago verde de tom artificial habitado por carpas, completam um cenário onírico.

Criado em 2002 pelo colecionador e empresário do minério Bernardo Paz, Inhotim surgiu para propiciar bem-estar e experiência sensível a públicos de diferentes estratos sociais. Após 13 anos, o número de visitas cresce de acordo com metas próximas às de grandes parques temáticos, e em seu cerne brotam contradições típicas de nosso tempo. Mantido em boa parte pela mineração que corrói as montanhas vizinhas, Inhotim precisa orquestrar a delicada relação entre consumo de massa, indústria do entretenimento e modos de apresentar e transmitir sutis conteúdos artísticos sem banalizá-los como playgrounds.

Nos jardins, pessoas admiradas circulam ou fazem filas para ver algo que não reconhecem de imediato como arte, comprovando a importância de haver tais atrativos para um público em formação. Entretanto, diante de várias obras em mau estado de conservação – pelo excesso de manipulação ou por falhas técnicas – surge uma dúvida em relação à capacidade de orientação das massas nas galerias. Peças rachadas, mau-cheiro, arranhões, luzes queimadas e outros problemas, avisam que algo não vai tão bem. Sonic Pavillion, de Doug Aitken, apresentava revestimentos arrancados dos vidros e assoalho, além de defeito no áudio do “som da terra”. Já Neither, de Doris Salcedo, Beam Drop, de Chris Burden e Elevazione, de Giuseppe Penone estavam interditadas, enquanto obras como Falha, de Renata Lucas, e uma escultura em acrílico e espuma de sabão, de Davi Lamelas, se mostravam desconjuntadas e quebradas. O diretor artístico de Inhotim, Antonio Grassi, comentou atencioso que a manutenção está sempre em marcha. Contudo, o desfaio é grande, pois enquanto o público novato nas galerias insiste em tocar erroneamente as frágeis obras, os jovens monitores pareceram perdidos frente tal demanda.

Instalações como Forty Part Motet, de Janet Cardiff, têm filas para controlar o fluxo mas alongam demais a espera. Ao mesmo tempo, para almoçar nos restaurantes há mais filas. À entrada do bandejão Oiticica, uma hostess chamava nomes ao microfone e tornava desagradável a experiência de quem estivesse à mesa ou visitando o Penetrável Magic Square #5, de Hélio Oiticica, em frente. Em um momento a impressão na parte baixa do enorme parque era de saturação, embora no dia foram contabilizados 3 mil visitantes.

Inohtim, contudo, é sempre bom e sua sustentabilidade depende tanto das belezas e qualidade dos serviços, quanto da integridade da coleção de arte capaz de cativar uma massa desejosa por entretenimento diferente. Os pontos altos são muitos e maiores, e como destaque há a obra de dança e performance de Babette Mangolte (1941), na Galeria Mata, além da deslumbrante T-téia no pavilhão de Lygia Pape cuja simplicidade, poesia e leveza, distantes do barulho do espetáculo, são próximos da melhor arte para se apreciar no silêncio.

*Texto original da versão publicada em Jornal O Globo, Segundo Caderno, 17/07/2015.

Dominique Gonzales-Foerster – MAM Rio de Janeiro

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Temporama é o título da individual no MAM de Dominique Gonzales-Foerster, artista francesa com residência em Paris e Rio de Janeiro há 17 anos. Curada pelo mexicano Pablo León de La Barra (atual diretor da Casa França-Brasil), trata-se de um exemplo redondo de uma “boa” exposição de arte contemporânea – embora essa noção de “bom” seja difícil de explicar sucintamente no espaço do jornal. A mostra remonta obras realizadas no final dos anos 1980 pela artista, ao lado de poucos e importantes trabalhos recentes, e possui montagem impecável, oferecendo um percurso preciso e a construção de um texto fluido entre as peças, dispostas esparsamente pela ampla sala do Museu sem divisórias nem paredes falsas.O tempo é o grande tema, e como um prólogo somos recebidos na entrada por uma projeção, sobre uma cortina de fitas, da artista vestida como Fitzcarraldo ouvindo ópera e nos convidando a viajar pela temporalidade suspensa da sala.

Ali o visitante se depara com a imensidão do local, ocupado ao centro por uma piscina de superfície azul metálica que se abre no chão negro e profundo. Em suas bordas, outro personagem nos fita: uma Marilyn Monroe com o olhar experiente de quem pôde envelhecer, encarnada de novo por Dominique, mulher de 50 anos apaixonada por literatura e escrita. Considerando esse interesse, pode-se interpretar seus ready-mades, intervenções arquiteônicas e objetos como capítulos de ficções plasmadas em arte visual, fundidas na materialidade do mundo.

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Logo na entrada, uma vitrine traz registros fotográficos antigos das primeiras versões dos trabalhos recriados no MAM, e é tocante reconhecer na exposição essas obras cheias de fôlego, atualizadas com as propostas novas sem apelo nostálgico. Tais peças são provas de um passado que permanece presente não como memória da artista, mas como projeto e possibilidade de olhar, hoje, para um futuro a ser reinventado com sutileza e certo humor.

A instalação de Dominique é para ser percorrida e perscrutada. Ela torna o museu máquina do tempo, aplicando-lhe filtros de cor azul e vermelho nas vidraças para sugerir um efeito 3D. A luz colorida que preenche a sala dá um aspecto artificial, sintético como tudo o que se encontra ali, exceto algumas flores já murchas em um vaso sobre um rádio/relógio que emite som e marca tempo nenhum, e uma pedra que nos observa quieta. Temporama embaralha a paisagem externa, linda e caótica, no interior do edifício de traçado moderno e visionário, sendo uma experiência espaço-temporal construída com elementos da literatura, do cinema e da arquitetura que deve ser vivida.

* Publicado em O Globo, Segundo Caderno, 6/7/2015.

Ana Vitória Mussi no Paço Imperial, Rio de Janeiro

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O Paço Imperial apresenta até dia 7 de junho a exposição Imagética (1968-2015), retrospectiva da catarinense Ana Vitória Mussi, com curadoria de Marisa Flórido e Adolfo Montejo Navas. Radicada no Rio de Janeiro nos anos 1960, a artista trabalhou como repórter fotográfica entre 1979 e 1989, e desenvolveu uma obra pioneira no Brasil, dedicada à exploração dos limites da imagem e dos contextos midiáticos que a relacionam a distintas formas violência. Sua produção artística investiga a fotografia como um campo ampliado para além da noção de registro documental, em obras de crítica social relacionadas a um questionamento da função informativa – e do posicionamento político – dos mass media. Tal questão é clara nas pinturas “Jornais” (1970), onde interferia nas notícias e imagens estampadas nos periódicos, e criava narrativas dramáticas sobre o país na ditadura militar, em um mundo em guerra fria.

De acordo com a curadora, Ana Vitória foi também uma das primeiras artistas brasileiras a se apropriar sistematicamente de imagens de segunda geração, como se nota em “Duplos” (2012), trabalhos resultantes de fotografia de monitores de TV, cuja visualidade futurista, de seres que surgem de um infinito fundo negro, remete de certo modo a Gary Hill, importante videoartista norte-americano dos anos 1990.

Para alguns críticos, Ana Vitória é uma iconoclasta, cuja operação de manipular imagens do mundo e ressignificá-las misturando técnicas se mostra presente desde obras mais antigas como “Ossos” (1968) até a videoinstalação “Bang” (2012). O primeiro trabalho, que consiste em recortes de jornais desenhados, chama a atenção pela violência subjacente de imagens em preto e branco de multidões pontuadas por ossadas gigantes; já no segundo, a reflexão parece apenas ter se atualizado. Em “Bang”, quatro projeções simultâneas intercalam imagens de guerrilha nos morros cariocas e das ocupações das UPPs do Rio (emitidas ao vivo e fotografadas da televisão) com sete filmes e documentários da Segunda Guerra Mundial, enquanto ao fundo soa como doce trilha sonora a canção “Bang Bang (My baby shot me down)”, com Nancy Sinatra, do filme Kill Bill I (2003/2004), de Quentin Tarantino.

Na mostra predomina o preto e branco, característica que destaca o drama das imagens sôfregas de Ana Vitória, e também as envolve de mistério a respeito de sua própria natureza no mundo. O tempo denso que paira estanque na exposição é também um elemento notável e perturbador, que nos lembra que as mídias, fadadas a uma obsolescência programada, servem para registrar o presente no momento justo em que ele se torna passado. Além disso, a morte física do homem e a morte da imagem em uma cultura baseada na sua produção colossal e no “ver e ser visto”, é um tema que inescapavelmente cerca toda a exposição. Nesse sentido, se encaixa especialmente a obra “Por um fio” (1977/2004), formada por 22 mil negativos, costurados com fios de náilon, de eventos da alta sociedade fotografados entre 1977 e 1989, guardados pela artista durante os 10 anos em que atuou como fotógrafa de colunas sociais.

Além da mostra de Ana Vitória Mussi, outras três exposições individuais com perfis diferentes e recortes artísticos plurais completam a visita ao Paço Imperial: O português José Pedro Croft com suas elucubrações sobre espaço, arquitetura e seu duplo nos papéis e esculturas com vidro, espelho e ferro; O falecido Paulo Roberto Leal com sua pouco conhecida e interessante obra de inspiração Neoconcreta, desenvolvida entre os anos 1970-90; E o paulistano Alex Cerveny, cujos desdenhos, pinturas e objetos contam um mundo homoerótico fantástico e contemporaneamente lírico.

*Publicado em Jornal O Globo, Segundo Caderno, 25/05/2015

Seminário Depois do Futuro – Museu de Arte do Rio – 12 e 13 de Maio

Futuro logo MAR OK

Seminário “Depois do Futuro: Ruínas e Reinvenções da Modernidade nas Artes Contemporâneas”

O evento reúne professores de distintas universidades do Rio de Janeiro, com atuações dentro e fora da academia, para refletir como as artes contemporâneas e as teorias culturais e estéticas que lhe cercam examinam a noção de futuro hoje. Longe se pretender um exercício de futurologia o seminário traz olhares sobre o presente e especula possibilidades de vida e arte em mundo em que dá sinais de colpaso
ecológico, político e social.

Local: MAR – Museu de Arte do Rio/ Escola do Olhar
Dias 12 e 13 de Maio de 2015
Horário: 10h-16h
Entrada Gratuita.
Lotação: 60 pessoas

Programação

12/05
10h Abertura РDaniela Labra Рapresenta̤̣o do projeto de pesquisa
“Depois do Futuro: Ruínas e reinvenções da modernidade nas
artes contemporâneas”.
10:20 Kátia Maciel (UFRJ)
11:00 Alessandra Vannucci (UFRJ/PUC-Rio)
11:40 Considerações finais da manhã
12-14h Intervalo
14:00 Paula Sibilia (UFF)
14:40 Ieda Tucherman (UFRJ)
15:30 Considerações finais
16:00 Encerramento do dia

13/05
10h Abertura – Daniela Labra
10:20 Frederico Coelho (PUC-Rio)
11:00 Guilherme Vergara (UFF)
11:40 Considerações finais da manhã
12-14h Intervalo
14:00 Marisa Flórido (UERJ)
14:40 Guto Nóbrega (UFRJ)
15:30 Considerações finais
16:00 Encerramento

O seminário se realiza dentro do marco da pesquisa pós-doutoral de mesmo título desenvolvida junto ao PPGCOM/UFRJ e o Núcleo N-Imagem,com o apoio da CAPES/Cnpq.

Imagine Brazil e o lugar das coisas

Imagine Brazil; Detalhe com obra de Tunga.
Imagine Brazil; Detalhe com obra de Tunga.

Há umas semanas, após visitar a exposição Imagine Brazil em São Paulo, no Instituto Tomie Ohtake, postei nas redes reflexões que abriram um interessante fórum crítico sobre o peso do mercado de arte na circulação institucional de obras e artistas no Brasil e no mundo hoje. A mostra, encerrada dia 3 de maio, foi pensada em 2013 para levar ao público europeu um panorama da arte brasileira contemporânea emergente, reunindo 14 artistas jovens a outros estabelecidos, escolhidos pelos primeiros como sendo suas referências. Assim, o todo seria uma constelação com distintas gerações que representaria o cenário das artes no país, ainda mal conhecido no exterior.

O projeto original integrava uma série de exposições realizadas no Astrup Fearnley Museet, na Noruega, acerca da arte jovem na América do Norte, (Uncertain States of America, 2003) China (China Power Station, 2006) e India (Indian Highway, 2009), e de acordo com o curador norueguês Gunnar Kvaran, a missão destas empreitadas seria “espalhar conhecimento e oferecer novas imagens a respeito das vibrantes cenas artísticas desses países”. Além de Kvaran, Imagine Brazil teve curadoria do celebrado Hans Ulrich Obrist e do francês Thierry Raspail, e antes de chegar a São Paulo passou por Oslo, Lyon e Doha.

Apesar dos renomados profissionais envolvidos e da boa seleção de artistas brasileiros, a mostra, que aqui teve versão reduzida, era um pot-pourri de trabalhos nem sempre significativos, expostos com pouca coerência, prejudicada por um formato voltado ao olhar estrangeiro que pouco sabe do país e sua arte. Assim, obras de Tunga, Adriana Varejão e até Caetano Veloso, com áudio de discos, surgiam em meio a artistas jovens como Sofia Borges, Gustavo Speridião e Rodrigo Matheus sem que houvesse um texto e contexto coerentes para o visitante que não imagina a vibração do Bras(z)il sugerida no título, mas a vive no cotidiano real.

Com diversas obras espalhadas por grandes salas, a exposição dava a impressão de ser composta de trabalhos na maioria retirados diretamente de galerias, uma vez que quase todas as fichas técnicas indicavam o nome do estabelecimento que emprestara o trabalho como “cortesia”. Sem demonizar aqui a atuação de galeristas sérios, já que a prática de empréstimo de obras para exibições é algo corrente até em Bienais (que hoje são vitrines de valorização de artistas e representantes), ali o problema era o excesso de “cortesias”, que quase aproximava a exposição a um showroom, com obras que aparentemente pertenciam mais ao galerista que ao artista. E foi esse o ponto que me moveu a lançar um post nas redes – entendendo justamente o meu próprio papel no sistema da arte como alguém que atua e colabora com o mercado, direta ou indiretamente, e que tem algum arrazoamento para analisar minimamente a situação.

Lancei um comentário crítico e indaguei por que as galerias corteses e cortejadas não constavam ali apenas nos agradecimentos junto ao texto curatorial, como é praxe, e alguns agentes culturais deram boas respostas: Patrícia Canetti, do site www.canalcontemporaneo.art.br apontou, por exemplo, que a galeria virou um ponto de referência na “geografia” do circuito, e lembrou do tempo em que as gravadoras eram importantes e suas marcas vinham à mente como um sobrenome do artista – algo que já ocorreria com a arte contemporânea; Para a crítica Carolina Soares, tal situação seria sintoma de como mercantiliza-se a arte antes que ela alcance reconhecimento crítico, e que nesse movimento o valor atribuído à obra é o de mercado, algo que cerceia o seu próprio potencial como arte.

Embora por um lado muitas instituições culturais, públicas ou privadas, ainda padecem profundas precariedades, por outro o mercado de arte brasileiro ganhou poder nas últimas décadas profissionalizando-se e articulando-se internamente, e criou um circuito legítimo que divulga – e vende – mais arte brasileira a novos e velhos colecionadores. Nesse movimento de crescimento de mercado, contudo, é importante notar que cresce também a urgência em pensar como a arte pode evitar ser dragada pela lógica de produção e descarte de produtos que domina nossa era, quando é compreendida como mais um objeto no mundo e não como pensamento sobre o mundo. Acreditar que as galerias são vilãs nesse processo seria tão ingênuo como a recusa a perceber que existe um sistema para o qual há muitos artistas dispostos a formatarem suas produções para o fim comercial e se contentarem com isso. São sinais dos tempos que fazem obras artísticas perderem conteúdo em meio ao espetáculo da publicidade ou da venda, esvaziando seu potencial de emocionar e instigar reflexões, servindo a tendências fugazes e ficando, por fim, imprestável como contribuição para um futuro mais humano e sensível.

ps. Este texto foi alterado do seu original publicado no Jornal O Globo em 4/05/2015, uma vez que sua circulação fez alguns outros agentes das artes reagirem mal às observações nele colocadas, afirmando que se estaria maldizendo o mercado por algum recalque ou moralismo. Contudo, essas afirmações não procedem posto que a discussão, ao menos nas redes, manteve-se além de picuinhas pessoais, considerando de modo franco vários aspectos da relação da arte com o sistema mercantil como dado explícito e corrente no mundo atual. Sempre haverá a voz daqueles verdadeiramente ressentidos ou dos que heroicamente esbravejam contra a norma de consumo e exclusão provocada pelo sistema capitalista. Porém, não foi o caso da discussão que se seguiu ao meu post inicial nas redes e nem pretende ser a tônica deste breve artigo.

Versão de texto publicado em Jornal O Globo, Segundo Caderno, 04/05/2015