Um Canto, Dois Sertões: Bispo do Rosário e os 90 Anos da Colônia Juliano Moreira

Casaco bordado por Artur Bispo do Rosário. S/d. Foto: Wilton Moltenegro
Casaco bordado por Artur Bispo do Rosário. S/d. Foto: Wilton Montenegro

A cidade do Rio de Janeiro é uma das capitais com mais instituições artísticas do país, sejam elas de natureza privada-pública ou apenas pública, com portes e programações diversas, algumas com objetivos bem singulares. Em muitos bairros cariocas, centros culturais e museus pequenos em condições precárias representam o único meio de contato de milhares de habitantes com obras de arte. O Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea, na Colônia Juliano Moreira, pertencente à prefeitura, é uma dessas instituições com parcos recursos e ambiciosa missão, cuja importância vai além do seu espaço expositivo. Batizado com o nome do ex-interno em 2000, 11 anos após a sua morte, o espaço abriga a obra plástica de Bispo, e é um pólo de cultura e memória único, instalado em uma região carente de opções culturais que vem sofrendo mudanças profundas com a urbanização impulsionada pelas Olimpíadas.

Em 2002 o Museu Bispo do Rosário teve agregado “Arte Contemporânea” em seu nome e hoje estabelece parcerias externas, contando com uma reduzida equipe para desenvolver projetos que trabalhem “questões básicas sobre a importância do acervo de Bispo, o público-alvo, a acessibilidade e as articulações que Bispo pode fazer, por meio da arte, com diversos campos do saber, como a saúde mental, a psiquiatria, a antropologia”, de acordo com a diretora Raquel Fernandes. Atualmente o curador e ex-diretor do Centro Cultural São Paulo, Ricardo Resende, cuida do extraordinário legado abrigado na instituição, ao mesmo tempo em que novas exposições de arte contemporânea que dialogam com o acervo e a memória da Colônia, começaram a ser desenvolvidas por curadores convidados, através de financiamentos oriundos de editais.

Assim surgiu a atual exposição em cartaz até Fevereiro de 2016, Um Canto, Dois Sertões: Bispo do Rosário e os 90 Anos da Colônia Juliano Moreira, com curadoria de Marcelo Campos. A mostra reúne 150 peças de Bispo do Rosário a outras 50 obras de dez artistas contemporâneos como Efrain Almeida, Caio Reisewitz, Marta Neves e Lin Lima, e ocupa diversos espaços do prédio que foi sede administrativa do complexo, como um antigo refeitório e o saguão de entrada. Entre peças do acervo e projetos específicos para a ocasião, o projeto comenta os dois universos centrais na vida de Bispo: a Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, onde viveu por cinquenta anos, e Japaratuba, em Sergipe, sua cidade natal, que seriam, na concepção de Campos, “os dois ‘sertões’ de Bispo do Rosário”.

Atravessar a cidade ou a Zona Oeste para visitar o Museu e esta exposição é uma oportunidade para adentrar no universo delirante e poético de Bispo do Rosário e ver possibilidades de interação de sua obra com a produção artística atual. Além disso, a visita nos faz ler um capítulo da história social do Brasil moderno, marcado pela exclusão e preconceito simbolizados nos antigos complexos manicomiais que se tornariam campos de concentração de doentes mentais em muitos países. Embora a exposição não toque especificamente neste ponto, obras como a do baiano Willyams Martins, que recria metaforicamente a cela de Bispo do Rosário utilizando-se de decalques das paredes de pavilhões desativados na Colônia, nos dão uma dimensão do sofrimento e clausura experimentados lá. Ao mesmo tempo, é também possível fazer um passeio até a cela que abrigou Bispo por anos, no pavilhão que ainda resiste, vazio, para ter ainda mais noção das tétricas experiências vividas pelos internos, cuja dor poucos conseguiram transmutar em criação artística, como fez Artur Bispo.

Em meio a gentrificações e glorificação da indústria cultural, o Museu Bispo do Rosário é uma resistência. A Colônia, hoje em processo de desativação, vê sua área antes rural se tornar urbe e a paz ainda reinante ser cortada pela futura via expressa Transolímpica. Se os ventos do progresso são inevitáveis, que estes então ajudem este espaço cultural a se tornar mais conhecido e estruturado, dando ao legado de Artur Bispo do Rosário, exposto até na 55a Bienal de Veneza, o cuidado que merece e à população um Museu de qualidade.

Publicado em Jornal O Globo, Segundo Caderno, Outubro de 2015.

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