Inhotim 13 anos depois

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Escultura de Marepe e galeria ao fundo, em Inhotim.

Inhotim é um complexo de arte contemporânea e paisagismo em Minas Gerais, considerado um dos mais espetaculares museus ao ar livre do mundo. Possui dezenas de pavilhões únicos com obras de expoentes artísticos nacionais e internacionais, rodeados por uma flora exuberante e bem-cuidada. Tudo é arte no parque de 140 hectares com mais de mil espécies de plantas, e harmônicas intervenções arquitetônicas e artísticas. Requintes como os bancos-troncos de Hugo França espalhados sob árvores, e um lago verde de tom artificial habitado por carpas, completam um cenário onírico.

Criado em 2002 pelo colecionador e empresário do minério Bernardo Paz, Inhotim surgiu para propiciar bem-estar e experiência sensível a públicos de diferentes estratos sociais. Após 13 anos, o número de visitas cresce de acordo com metas próximas às de grandes parques temáticos, e em seu cerne brotam contradições típicas de nosso tempo. Mantido em boa parte pela mineração que corrói as montanhas vizinhas, Inhotim precisa orquestrar a delicada relação entre consumo de massa, indústria do entretenimento e modos de apresentar e transmitir sutis conteúdos artísticos sem banalizá-los como playgrounds.

Nos jardins, pessoas admiradas circulam ou fazem filas para ver algo que não reconhecem de imediato como arte, comprovando a importância de haver tais atrativos para um público em formação. Entretanto, diante de várias obras em mau estado de conservação – pelo excesso de manipulação ou por falhas técnicas – surge uma dúvida em relação à capacidade de orientação das massas nas galerias. Peças rachadas, mau-cheiro, arranhões, luzes queimadas e outros problemas, avisam que algo não vai tão bem. Sonic Pavillion, de Doug Aitken, apresentava revestimentos arrancados dos vidros e assoalho, além de defeito no áudio do “som da terra”. Já Neither, de Doris Salcedo, Beam Drop, de Chris Burden e Elevazione, de Giuseppe Penone estavam interditadas, enquanto obras como Falha, de Renata Lucas, e uma escultura em acrílico e espuma de sabão, de Davi Lamelas, se mostravam desconjuntadas e quebradas. O diretor artístico de Inhotim, Antonio Grassi, comentou atencioso que a manutenção está sempre em marcha. Contudo, o desfaio é grande, pois enquanto o público novato nas galerias insiste em tocar erroneamente as frágeis obras, os jovens monitores pareceram perdidos frente tal demanda.

Instalações como Forty Part Motet, de Janet Cardiff, têm filas para controlar o fluxo mas alongam demais a espera. Ao mesmo tempo, para almoçar nos restaurantes há mais filas. À entrada do bandejão Oiticica, uma hostess chamava nomes ao microfone e tornava desagradável a experiência de quem estivesse à mesa ou visitando o Penetrável Magic Square #5, de Hélio Oiticica, em frente. Em um momento a impressão na parte baixa do enorme parque era de saturação, embora no dia foram contabilizados 3 mil visitantes.

Inohtim, contudo, é sempre bom e sua sustentabilidade depende tanto das belezas e qualidade dos serviços, quanto da integridade da coleção de arte capaz de cativar uma massa desejosa por entretenimento diferente. Os pontos altos são muitos e maiores, e como destaque há a obra de dança e performance de Babette Mangolte (1941), na Galeria Mata, além da deslumbrante T-téia no pavilhão de Lygia Pape cuja simplicidade, poesia e leveza, distantes do barulho do espetáculo, são próximos da melhor arte para se apreciar no silêncio.

*Texto original da versão publicada em Jornal O Globo, Segundo Caderno, 17/07/2015.

Revista Número Online: de 2004 até hoje.

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A Revista Número foi uma publicação independente de arte e crítica editada pelo antigo grupo de ‘jovens críticos’ do Centro Mariantonia/USP entre 2003-2010, e teve edição de 10 Números. A imagem acima é  uma ilustração  da capa da Número 9, cujo tema foi Infinito.
No site do Forum Permanente é possível revisitar a Número e ver textos inciais de seus editores, entre eles Cauê Alves, Guy Amado, Carla Zaccagnini, Fernando Oliva, Juliana Monachesi, José Augusto Ribeiro, Afonso Luz, Tatiana ferraz, Thaís Rivitti ou Thaísa Palhares, além de vários convidados.

A Número vive online desde abril de 2006 em http://www.forumpermanente.org/rede/numero

Dominique Gonzales-Foerster – MAM Rio de Janeiro

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Temporama é o título da individual no MAM de Dominique Gonzales-Foerster, artista francesa com residência em Paris e Rio de Janeiro há 17 anos. Curada pelo mexicano Pablo León de La Barra (atual diretor da Casa França-Brasil), trata-se de um exemplo redondo de uma “boa” exposição de arte contemporânea – embora essa noção de “bom” seja difícil de explicar sucintamente no espaço do jornal. A mostra remonta obras realizadas no final dos anos 1980 pela artista, ao lado de poucos e importantes trabalhos recentes, e possui montagem impecável, oferecendo um percurso preciso e a construção de um texto fluido entre as peças, dispostas esparsamente pela ampla sala do Museu sem divisórias nem paredes falsas.O tempo é o grande tema, e como um prólogo somos recebidos na entrada por uma projeção, sobre uma cortina de fitas, da artista vestida como Fitzcarraldo ouvindo ópera e nos convidando a viajar pela temporalidade suspensa da sala.

Ali o visitante se depara com a imensidão do local, ocupado ao centro por uma piscina de superfície azul metálica que se abre no chão negro e profundo. Em suas bordas, outro personagem nos fita: uma Marilyn Monroe com o olhar experiente de quem pôde envelhecer, encarnada de novo por Dominique, mulher de 50 anos apaixonada por literatura e escrita. Considerando esse interesse, pode-se interpretar seus ready-mades, intervenções arquiteônicas e objetos como capítulos de ficções plasmadas em arte visual, fundidas na materialidade do mundo.

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Logo na entrada, uma vitrine traz registros fotográficos antigos das primeiras versões dos trabalhos recriados no MAM, e é tocante reconhecer na exposição essas obras cheias de fôlego, atualizadas com as propostas novas sem apelo nostálgico. Tais peças são provas de um passado que permanece presente não como memória da artista, mas como projeto e possibilidade de olhar, hoje, para um futuro a ser reinventado com sutileza e certo humor.

A instalação de Dominique é para ser percorrida e perscrutada. Ela torna o museu máquina do tempo, aplicando-lhe filtros de cor azul e vermelho nas vidraças para sugerir um efeito 3D. A luz colorida que preenche a sala dá um aspecto artificial, sintético como tudo o que se encontra ali, exceto algumas flores já murchas em um vaso sobre um rádio/relógio que emite som e marca tempo nenhum, e uma pedra que nos observa quieta. Temporama embaralha a paisagem externa, linda e caótica, no interior do edifício de traçado moderno e visionário, sendo uma experiência espaço-temporal construída com elementos da literatura, do cinema e da arquitetura que deve ser vivida.

* Publicado em O Globo, Segundo Caderno, 6/7/2015.

Gustavo Speridião, Rio de Janeiro

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No texto “Da crítica às instituições a uma instituição da crítica” (2005), a artista norte-americana Andrea Fraser analisa como propostas artísticas questionadoras do sistema da arte, surgidas dentro de uma lógica de crítica institucional na década de 1960, se tornaram práticas festejadas e acolhidas sem atrito pelo meio da arte contemporânea. Em muitos casos, a obra de arte que critica a instituição onde se engendra ou é exposta pode levar a discussões tão grandes que tornam o evento criticado um dispositivo de consagração do artista, sua proposta e do local de exposição. Na atualidade tornou-se normal ver em museus, bienais e eventos similares, trabalhos artísticos que escancaram contradições políticas e problemas éticos de procedimentos comerciais, contratos, hierarquias, promoções e tantos elementos nada estéticos que integram a máquina de aclamação do autor e a consequente valorização dos agentes que lhe acompanham: o curador, o colecionador, o galerista, o centro cultural, o crítico, etc.

A exposição “Lona”, do carioca Gustavo Speridião, na Galeria Anita Schwartz, na Gávea, funciona dentro dessa lógica de crítica institucional – embora não esteja em uma instituição. Inicialmente, a mostra pode insinuar um mal-estar quando se entra no portentoso espaço comercial e vemos enormes lonas de algodão com explícito conteúdo de crítica social e questionamentos da função social do artista, da arte e sua valorização como um objeto de consumo colecionável. Algumas lonas, em um total de 18, são colagens de panfletos e cartazes reais, de vários países, com propagandas de esquerda, dizeres subversivos e estímulos inflamados à desobedência civil, relativos aos levantes anti-capitalismo assistidos nos dez últimos anos. Outras possuem escritos a carvão e nanquim que lembram graffitis em muros ou faixas de protesto, com dizeres como “Não temer o Mundo, mudá-lo!” ou “Se fosse bom não chamava Trabalho”. Esta frase, aliás, é emblemática da própria contradição assumida por Speridião, um artista de aspirações revolucionárias que vende conscientemente sua força de trabalho e seu produto em um ambiente elitista e burguês, o qual provoca de dentro.

Há, ainda, lonas que abordam de modo mais direto uma discussão sobre a pintura. São quase-monocromos em vermelho, branco e preto, que evocam as cores predominantes das peças gráficas das manifestações, e de certo modo fazem referência às vanguardas construtivas russas e a Bauhaus. Essas escolas estiveram ligadas a concepções revolucionárias da função da arte na sociedade e noções utópicas de práticas de trabalho coletivo no início do século XX.

Mais que ironia, o cinismo talvez seja o tom que amarra a individual de Gustavo Speridião, e isso fica claro quando, no segundo andar da burguesa galeria, nos deparamos com a imensa tela com o dizer “Maldita Burguesia”. Do lado de fora, no terraço com vista para a Lagoa, um conteiner vermelho do estabelecimento exibe o único vídeo da exposição. Trata-se de um documentário das manifestações de 2013, com trilha sonora de punk-rock e hardcore, onde se assistem cenas cruas da emoção de manifestantes ainda não polarizados entre o azul e o vermelho, entremeadas por momentos absurdos de violência do estado em resposta à raiva explosiva de jovens irados contra tanta corrupção, mentiras do poder público e intrusões do capital privado no cotidiano.

“Lona” diz respeito ao suporte mais presente na mostra mas também pode ser um trocadilho com ir à lona, nocautear, jogar no chão. Speridião dá um soco no espaço burguês da arte, e também nas possibilidades de compreender o que é pintura contemporânea e qual a função do artista e sua força de trabalho neste mundo de tendências descartáveis. Contudo, não há ofensas. Há um contrato, um trato comercial e uma crítica institucionalizada assumida, mas nenhum pouco covarde.

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*Texto publicado em O Globo, Segundo Caderno, 8/06/2015.

Imagine Brazil e o lugar das coisas

Imagine Brazil; Detalhe com obra de Tunga.
Imagine Brazil; Detalhe com obra de Tunga.

Há umas semanas, após visitar a exposição Imagine Brazil em São Paulo, no Instituto Tomie Ohtake, postei nas redes reflexões que abriram um interessante fórum crítico sobre o peso do mercado de arte na circulação institucional de obras e artistas no Brasil e no mundo hoje. A mostra, encerrada dia 3 de maio, foi pensada em 2013 para levar ao público europeu um panorama da arte brasileira contemporânea emergente, reunindo 14 artistas jovens a outros estabelecidos, escolhidos pelos primeiros como sendo suas referências. Assim, o todo seria uma constelação com distintas gerações que representaria o cenário das artes no país, ainda mal conhecido no exterior.

O projeto original integrava uma série de exposições realizadas no Astrup Fearnley Museet, na Noruega, acerca da arte jovem na América do Norte, (Uncertain States of America, 2003) China (China Power Station, 2006) e India (Indian Highway, 2009), e de acordo com o curador norueguês Gunnar Kvaran, a missão destas empreitadas seria “espalhar conhecimento e oferecer novas imagens a respeito das vibrantes cenas artísticas desses países”. Além de Kvaran, Imagine Brazil teve curadoria do celebrado Hans Ulrich Obrist e do francês Thierry Raspail, e antes de chegar a São Paulo passou por Oslo, Lyon e Doha.

Apesar dos renomados profissionais envolvidos e da boa seleção de artistas brasileiros, a mostra, que aqui teve versão reduzida, era um pot-pourri de trabalhos nem sempre significativos, expostos com pouca coerência, prejudicada por um formato voltado ao olhar estrangeiro que pouco sabe do país e sua arte. Assim, obras de Tunga, Adriana Varejão e até Caetano Veloso, com áudio de discos, surgiam em meio a artistas jovens como Sofia Borges, Gustavo Speridião e Rodrigo Matheus sem que houvesse um texto e contexto coerentes para o visitante que não imagina a vibração do Bras(z)il sugerida no título, mas a vive no cotidiano real.

Com diversas obras espalhadas por grandes salas, a exposição dava a impressão de ser composta de trabalhos na maioria retirados diretamente de galerias, uma vez que quase todas as fichas técnicas indicavam o nome do estabelecimento que emprestara o trabalho como “cortesia”. Sem demonizar aqui a atuação de galeristas sérios, já que a prática de empréstimo de obras para exibições é algo corrente até em Bienais (que hoje são vitrines de valorização de artistas e representantes), ali o problema era o excesso de “cortesias”, que quase aproximava a exposição a um showroom, com obras que aparentemente pertenciam mais ao galerista que ao artista. E foi esse o ponto que me moveu a lançar um post nas redes – entendendo justamente o meu próprio papel no sistema da arte como alguém que atua e colabora com o mercado, direta ou indiretamente, e que tem algum arrazoamento para analisar minimamente a situação.

Lancei um comentário crítico e indaguei por que as galerias corteses e cortejadas não constavam ali apenas nos agradecimentos junto ao texto curatorial, como é praxe, e alguns agentes culturais deram boas respostas: Patrícia Canetti, do site www.canalcontemporaneo.art.br apontou, por exemplo, que a galeria virou um ponto de referência na “geografia” do circuito, e lembrou do tempo em que as gravadoras eram importantes e suas marcas vinham à mente como um sobrenome do artista – algo que já ocorreria com a arte contemporânea; Para a crítica Carolina Soares, tal situação seria sintoma de como mercantiliza-se a arte antes que ela alcance reconhecimento crítico, e que nesse movimento o valor atribuído à obra é o de mercado, algo que cerceia o seu próprio potencial como arte.

Embora por um lado muitas instituições culturais, públicas ou privadas, ainda padecem profundas precariedades, por outro o mercado de arte brasileiro ganhou poder nas últimas décadas profissionalizando-se e articulando-se internamente, e criou um circuito legítimo que divulga – e vende – mais arte brasileira a novos e velhos colecionadores. Nesse movimento de crescimento de mercado, contudo, é importante notar que cresce também a urgência em pensar como a arte pode evitar ser dragada pela lógica de produção e descarte de produtos que domina nossa era, quando é compreendida como mais um objeto no mundo e não como pensamento sobre o mundo. Acreditar que as galerias são vilãs nesse processo seria tão ingênuo como a recusa a perceber que existe um sistema para o qual há muitos artistas dispostos a formatarem suas produções para o fim comercial e se contentarem com isso. São sinais dos tempos que fazem obras artísticas perderem conteúdo em meio ao espetáculo da publicidade ou da venda, esvaziando seu potencial de emocionar e instigar reflexões, servindo a tendências fugazes e ficando, por fim, imprestável como contribuição para um futuro mais humano e sensível.

ps. Este texto foi alterado do seu original publicado no Jornal O Globo em 4/05/2015, uma vez que sua circulação fez alguns outros agentes das artes reagirem mal às observações nele colocadas, afirmando que se estaria maldizendo o mercado por algum recalque ou moralismo. Contudo, essas afirmações não procedem posto que a discussão, ao menos nas redes, manteve-se além de picuinhas pessoais, considerando de modo franco vários aspectos da relação da arte com o sistema mercantil como dado explícito e corrente no mundo atual. Sempre haverá a voz daqueles verdadeiramente ressentidos ou dos que heroicamente esbravejam contra a norma de consumo e exclusão provocada pelo sistema capitalista. Porém, não foi o caso da discussão que se seguiu ao meu post inicial nas redes e nem pretende ser a tônica deste breve artigo.

Versão de texto publicado em Jornal O Globo, Segundo Caderno, 04/05/2015

Rodrigo Braga, “Tombo”

Exposição "Tombo", de Rodrigo Braga na Casa França-Brasil
Exposição “Tombo”, de Rodrigo Braga na Casa França-Brasil

A Casa França-Brasil apresenta “Tombo”, primeira exposição individual na cidade de Rodrigo Braga, artista nascido no Pará, criado em pernambuco e residente no Rio há 4 anos. Destaque de uma geração que surgiu na cena de arte contemporânea há cerca de uma década, Braga chamou a atenção em 2004 com a série Fantasia de Compensação, a qual consistia na sequência de imagens de seu rosto recebendo, em uma sala de cirurgia, implantes de secções da face de um cão rottweiler. De aspecto realista, as fotografias exploravam o potencial de ficção da imagem digital manipulada, e permitia ao artista simbolicamente dotar-se da ferocidade e força do animal. Tendo como assunto o enfrentamento do homem com a sua própria animalidade, a natureza e a cultura, Rodrigo Braga desde então exibe projetos que evocam com frequência imagens fantásticas e viscerais, resultantes de vivências em situações-limite que ele mesmo forja. No seu trabalho, a morte e o inescapável retorno do corpo orgânico à terra é recorrente, enquanto um ar solene parece conter a tragédia e dar um ar dramático às suas fotografias e vídeos.

Em “Tombo”, Braga mostra suas questões desdobradas de modo maduro, mantendo o tom solene mas aliviando a carga visceral. A individual, muito bem construída com a curadora Thaís Rivitti, dispensa elementos demais e incorpora objetos de distintas naturezas para criar uma narrativa menos ficcional do que parece. Troncos de palmeiras no chão, fotografias de arquivo, pranchas de botânica, croquis de arquitetura, uma videoinstalação: “Tombo” pode ser lida como um romance ancorado em fatos reais, que gira em torno do simbolismo evocado pela palmeira imperial no Brasil e em especial no Rio de Janeiro. Aqui foi plantada, por D. João VI, no Jardim Botânico, a primeira semente da árvore, trazida das Ilhas Maurício. O momento marcava a modernização da nação e a criação das primeiras instituições como a Biblioteca e a Praça do Comércio, hoje a Casa França-Brasil.

O visitante é recebido na entrada por mais de 15 toras de palmeiras centenárias que jazem no chão, como vestígios de um tempo antigo e testemunhas das transformações da cidade. Compreendidos como ruínas, os troncos têm uma cumplicidade temporal com as 24 colunas do edifício de 1820, projetado por Grandjean de Montigny. De certo modo “Tombo” traz o tom distanciado e o tempo estancado dos museus históricos, quebrado, porém, pelo video com imagens de corte de palmeiras sem vida, no Rio. A sonorização do trabalho vale uns minutos de escuta atenta.

Tombo, que significa queda e também tombamento, proteção de patrimônio, leva a uma reflexão do constante movimento de construir e demolir a memória das cidades que existe aqui. Não por acaso há referências ao prédio da Imperial Academia de Belas Artes, projetado por Montigny em 1826 e demolido em 1937 para dar lugar a um terreno hoje usado como estacionamento. Embora Rodrigo Braga não toque só neste assunto, a mostra ilustra, melancólica, o soterramento da história pelo anseio de se construir uma nova História, aquela prescrita no futuro moderno, numa utopia de progresso hoje estagnada no presente. Ao buscar o novo, deixa-se tombar, cair o velho. Mas será inevitável demolir o passado para se investir no novo? Perguntemos às palmeiras.

Publicado em O Globo, Segundo Caderno, Abril de 2015.

Mostra de Osmar Dillon no Rio de Janeiro

Osmar Dillo, Déc. 1970. Foto: Pat Kilgore
“Eu Tu”. Déc. 1970.  Foto: Pat Kilgore

O Centro de Artes Hélio Oiticica, na Praça Toradentes, Centro do Rio de Janeiro, apresenta uma singela exposição do arquiteto, artista e poeta Osmar Dillon (Belém, 1930- RJ, 2013) cuja obra integrava poesia e pintura resultando em trabalhos categorizados como livros-poemas e não-objetos verbais. Vivendo no Rio na época da eclosão do Neoconcretismo, participou das Exposições de Arte Neoconcreta de 1960 e 1961, fundamentais para os posteriores desenvolvimentos artísticos brasileiros. Embora tenha se ligado ao movimento e estado presente nestes eventos Osmar Dillon, que parece ter sido um homem discreto, não alcançou a mesma notoriedade dos colegas Lygia Clark, Lygia Pape e Hélio Oiticica, ou Ferreira Gullar, cuja obra poética-plástica veio acompanhada de um discurso conceitual sofisticado que gerou a “Teoria do não-objeto” (1960).

Esta exposição procura contribuir no reposicionamento da obra de Dillon na história da arte brasileira do século XX, apoiando-se em uma pesquisa correta e reunindo trabalhos e projetos executados entre 1960-73, sendo alguns praticamente inéditos. Como aponta a curadora Izabela Pucu, as obras reunidas mostram o interesse de Dillon na relação entre palavra e visualidade. A curadoria, construída em parceria com o companheiro de vida do artista, Roberto Feitosa, dá ao conjunto um ar sutilmente amoroso e despojado, evidenciado logo no início do percurso com uma carta de Feitosa sobre/para Dillon, datilografada em papel amarelado e emoldurada. Ali ficamos sabendo que o artista era um homem muito criativo, de bons amigos e reservado, desinteressado em self-marketing e networking – o que explicaria de certo modo a pouca visibilidade que sua obra recebeu nas últimas décadas.

A exposição, que é curta, tem trabalhos formalmente curiosos, agradáveis e bem literais no sentido de se quererem entender como literatura, imagem e desenho. Dillon, formado em arquitetura em 1954, testemunhou o desenvolvimento da arte concreta e do design no Brasil, e tais referências são marcantes no conjunto de não-objetos e livro-poemas selecionados. Fica claro que estas obras tridimensionais feitas em madeira, papel, ferro, espelho ou acrílico, participativas ou não, expressam imagens que se completam pela matéria e sua forma, em uma pesquisa artística consonante com discursos da arte dos anos 1960-70. Bons exemplos são a escultura-poema-objeto Arte e Sopro (1960-1961) e o totem Boca-Eco/Sexo-Ovo (1970). É possível tocar em vários dos trabalhos, com e sem a orientação de um monitor, sendo essencial para a fruição dos livros-poema especialmente.

A mostra termina em uma sala grande com alguns desenhos e uma tela da série Devorantes, de 1969, todos de inspiração surrealistas, que não chegam a despertar grande interesse por aparentarem ser uma amostra muito pequena do que foi uma grande pesquisa do artista. Neste espaço também se encontram os desenhos/projetos da série Estudo para um Monumento Vivencial I, II e III (1961-1970) que dialogam de modo complexo com o horizonte e a arquitetura da recém inaugurada Brasília. Em uma parede, documentos e artigos de jornal ajudam a contar a trajetória de Dillon entre os anos 1960-70, assim como um pouco do cenário da arte de vanguarda do período. Ao lado desses registros, quinze poemas do artista, datilografados em papel amarelado e emoldurados, encerram o percurso de modo tocante. São composições muito simples e ritmadas, que de certa maneira concentram o pensamento que dá corpo aos trabalhos tridimensionais. Finda a visita fica a sensação de que Osmar Dillon ainda tem muito para ser estudado e exibido, sendo este só um primeiro passo, pequeno e importante, para uma revisão mais ampla de sua obra poética.

"Arte e Sopro" (1960-61) Foto: Pat Kilgore
“Arte e Sopro” (1960-61)
Foto: Pat Kilgore

* Publicado em Jornal O Globo, Segundo Caderno, 16/03/2015

Teresa Margolles em Recife

 DSC01010A Fundação Joaquim Nabuco em Recife exibe até 8 de março a exposição “Enquanto For Necessário”, primeira individual da mexicana Teresa Margolles no Brasil, sob curadoria de Moacir dos Anjos. Conhecida internacionalmente por discutir de modo contundente a violência urbana que vitima milhares de pessoas em seu país, Margolles exibe alguns trabalhos antigos, além do resultado de um projeto novo envolvendo bordadeiras da comunidade recifense de Alto José do Pinho.

Formada em arte e em medicina forense, a artista se dedica desde os anos 1990 a um trabalho artístico que denuncia o escabroso cenário de homicídios em massa causados pelo narcotráfico no México. Tendo como ponto de partida cenas e relatos de crimes e eventos violentos ocorridos em lugares como Ciudad Juárez, na fronteira com os E.U.A., ou Culiacán, onde nasceu, Teresa cria narrativas fascinantes e dolorosas ancoradas numa realidade muito dura. Embora ela exponha situações ocorridas em cidades mexicanas, o trágico panorama que aborda se extende por muitos centros e periferias latinoamericanos marcados pela desigualdade social, corrupção endêmica e a ação criminosa de milícias de todo tipo, tal como se vê no Recife e no próprio Rio de Janeiro. Como aponta Moacir dos Anjos, o trabalho desta artista cada vez mais alcança lugares afastados do México mas que partilham com esse país a necessidade de tornar visível e lidar com a violência que atinge populações desguarnecidas dos direitos mínimos assegurados. E o direito à vida é um deles.

A exposição traz obras como PM (2012),exibida na 7a Bienal de Berlim em uma versão diferente da que se vê aqui. No Recife, o trabalho se apresenta como uma projeção sequencial de capas do jornal popular de mesmo nome colecionadas pela artista ao longo de um ano em Ciudad Juárez, uma das cidades mais violentas do mundo. Cada imagem projetada mostra as primeiras páginas do tablóide ilustradas por fotos de cadáveres, quase sempre ao lado de fotografias de mulheres sensuais e anúncios de prostituição. O ritmo quase monótono dos slides evidenciam a escandalosa desvalorização da vida no cotidiano dessa e tantas outras cidades, enquanto também explicita a operação do jornal de aproximar em seu espaço privilegiado “corpos radicalmente regulados pela morte e outros regidos pela satisfação prometida pelo sexo pago”, nas palavras do curador. Além de PM, completam a mostra Trepanações (sons do necrotério), 2003, trabalho sonoro que reproduz o ruído de uma serra cortando a cabeça de uma vítima de assassinato durante a autópsia; Esta propriedade não será demolida, 2009-2013, que apresenta fotografias de propriedades à venda ou abandonadas em função da insegurança em Ciudad Juárez; a videoinstalação Como Saímos?, 2010, que exibe um vídeo feito do interior de um carro de passeio, onde crianças pobres são filmadas, do lado de fora, perguntando aos passageiros do veículo onde há uma saída. Por último, é apresentado o resultado do trabalho realizado em conjunto com as mulheres bordadeiras da comunidade do Alto José do Pinho. Este projeto integra uma série de ações que a artista desenvolve em localidades diversas com bordadeiras convidadas a trabalhar sobre tecidos previamente embebidos em sangue ou fluidos de uma pessoa assassinada. Enquanto as mulheres conversam sobre medos e o risco que rodam suas vidas, vão surgindo imagens bordadas que remetem à sua realidade insegura e a relatos da violência testemunhada, junto a projeções de um futuro melhor que talvez chegue um dia.

No Brasil, Berna Reale, Armando Queiróz e Clara Ianni são dos poucos artistas que tocam em temas trágicos e sujam de leve o tapete vermelho do sistema artístico. Como Teresa Margolles, suas obras mostram que a arte contemporânea ainda pode fazer crítica social séria apesar da tola aura de glamour que a prende em armadilhas fúteis alheias aos conflitos do mundo real.

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Jonathas de Andrade no MAR, Rio de Janeiro

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O Museu do Homem do Nordeste foi criado no Recife em 1979 a partir da junção dos acervos do Museu do Açúcar, do Museu de Antropologia e do Museu de Arte Popular de Permambuco. Sua concepção museológica inspira-se no conceito de museu regional do sociólogo e antropólogo Gilberto Freyre, e seu acervo possui documentos das formas de arquitetura local e objetos que representam as manifestações socio-culturais populares do Nordeste, como a cerâmica, o carnaval e os cultos religiosos sincréticos.

Apropriando-se do nome e da proposta da instituição pernambucana, Jonathas de Andrade, alagoano radicado no Recife, ocupa o primeiro andar do MAR até 22 de março, com uma versão particular, atualizada e política do Museu do Homem do Nordeste. A exposição reúne 18 obras suas e 74 peças da coleção Fundação Joaquim Nabuco (dos acervos do Centro de Estudos da História Brasileira e do Museu do Homem do Nordeste), da Fundação Gilberto Freyre e do Instituto Lula Cardoso Ayres.

O resultado é um conjunto narrativo composto por instalações, vídeos, fotografias, pinturas, objetos e documentos que tensionam estereótipos e ideias pré-concebidas vinculadas à região. O Museu do Homem do Nordeste no MAR possui metodologia de investigação e catalogação de dados própria, que ganha corpo na sala do museu, sendo ela mesma uma proposta museográfica diferente, que informa uma ampla pesquisa sobre contradições e perversidades históricas brasileiras, discutida desde um ponto de vista nordestino, artístico e contemporâneo.

O Museu do Homem do Nordeste é composto por trabalhos com processos longos, tal como Levante, filme que dá visibilidade ao problema dos carroceiros na capital pernambucana: Trabalhadores socialmente invisíveis, que ganham a vida fazendo fretes em carroças de cavalos há décadas, e vêm sendo banidos das vias públicas de Recife pela especulação imobiliária e os veículos motorizados, ficando sem alternativa de sustento. Procurando dar voz à situação, o artista promoveu com os carroceiros a 1a Corrida de Carroças no Centro da Cidade do Recife, um protesto barulhento e celebratório, sob o pretexto de ser o roteiro de Levante. Tal estratégia permitiu a Andrade desenrolar toda a burocracia pública para as devidas autorizações da filmagem e, consequentemente, do protesto.

Enquanto o filme explora esteticamente a ambiguidade típica de obras artísticas que lidam com a realidade, a documentação da Corrida é exposta com notícias da imprensa, declarações e registros do cotidiano dos carroceiros, dando a dimensão desse mundo próximo do qual constrange falar. Quando Jonathas produzia Levante, entre 2012 e 2013, o país viveu as Jornadas de Junho e viu a violenta repressão do Estado. Assim, relatos de acontecimentos dessa época se somam à documentação da Corrida, formando um panorama tenso das recentes convulsões sociais brasileiras.

Os trabalhos da mostra usam táticas de ação distintas. Nos Cartazes do Museu do Homem do Nordeste, o artista publicou anúncios em classificados de um jornal popular do Recife, convocando homens trabalhadores com qualidades como: morenos, mãos fortes, boa índole, entre 30-50 anos, descendentes de escravos, feios ou bonitos, para posarem para arquivo fotográfico. Os interessados deveriam posar do modo como se imaginavam representando a região, e então formariam o catálogo de modelos másculos pouco ortodoxos dos cartazes do Museu. Além destas peças, a obra se completa com seis cadernos de anotações do artista sobre o processo de encontro e realização da foto com o trabalhador, revelando como são compreendidos e reproduzidos estereótipos de masculinidade e erotismo.

O Museu do Homem do Nordeste é um projeto fascinante na sua virulenta discussão cultural, apresentando de modo algo desconfortável crueza material, histórica, e sensualidade bruta. Suas questões atravessam a arte, a casa e a rua, conseguindo ocupar a instituição de forma inteligente e crítica, desconstruindo mitos de um Brasil pós-moderno que finge ignorar a herança escravocrata que ainda paira em 2015.

*Publicado em Jornal O Globo, Segundo Caderno, 6-01-2015

Blog do projeto Travessias

A exposição Travessias – Arte Contemporânea na Maré, em seu terceiro ano de atividades, consolidou-se como um projeto de reflexão e discussão sobre a arte contemporânea e as transformações do espaço urbano na atualidade. Travessias 3 – Arte Contemporânea na Maré fica aberta ao público até o dia 16 de novembro no Galpão Bela Maré, localizado na Favela Nova Holanda, Zona Norte do Rio de Janeiro.

Com organização do artista plástico carioca Daniel Senise, a Travessias 3 reúne trabalhos inéditos e de acervo dos artistas Barrão, Dora Longo Bahia, Sandra Kogut, Mauro Restiffe, Jonathas de Andrade, Cao Guimarães, Luiz Zerbini e dos fotógrafos do Imagens do Povo, programa realizado pelo Observatório de Favelas.“ Partimos do nome do projeto, Travessias, que sugere integração, para convidar artistas cujas obras têm a possibilidade de criar relações com o local onde serão expostas.

Desde sua primeira edição o Travessias vem experimentando e aprimorando metodologias de aproximação e comunicação pelas artes visuais, em formatos de exposições diferentes uns dos outros. A sua proposta é única no panorama da arte do Brasil, sendo um laboratório estético, afetivo e sensorial aberto ao público mais diverso. Travessias acontece em uma zona de exclusão social e extrema violência urbana, e sua meta fundamental é construir olhares sensíveis e saberes múltiplos através de inciativas artísticas contemporâneas.

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Visão geral da exposição com projeção do núcleo de fotógrafos da Maré, Imagens do Povo. Imagem: Eduardo Magalhâes.

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