Marco Paulo Rolla – Cotidiano Radical

Pic Nic. Foto: Marco Paulo Rolla
Pic Nic. Foto: Marco Paulo Rolla

A Caixa Cultural, no Centro do Rio, exibe a primeira individual do mineiro Marco Paulo Rolla, um nome importante para a arte brasileira contemporânea, em especial aquela que explora a interdisciplinariedade entre distintos campos artísticos. No caso deste artista, sua atuação variada pode ser compreendida como multimídia, uma vez que sua poética é construída sobre diversos suportes e linguagens, da escultura à performance, da pintura e desenho ao vídeo-registro.

“Cotidiano Radical” tem curadoria da pernambucana Cristiana Tejo, e reúne trabalhos realizados entre 1990-2005 – contando com a reencenação da performance “Café da Manhã”(2001-2015) na abertura, deixando o visitante curioso em saber quais caminhos artísticos foram tomados por Marco Paulo recentemente. No entanto, o conjunto apresentado é de grande beleza plástica e profundidade existencial/conceitual, sendo exibido de modo coerente e bem montado, capaz de driblar o problemático chão de pedra da galeria, muito chamativo, que frequentemente interefere no ambiente das exposições ali colocadas.

A mostra tem trabalhos raros como colagens fotografadas em preto e branco do início dos anos 90, e as pinturas e colagens sobre tela da mesma época, como “A Batedeira” (1991), de visualidade Kitsch e Pop, possuidoras da verve humorada, ácida e melancólica do artista, cuja atuação se destaca no meio da performance arte, também como curador e professor. Nas palavra da curadora, “a ambiência da obra de Marco Paulo Rolla é inspirada no barroco: cores quentes, dramaticidade, luz…”.

De fato, as obras selecionadas transmitem tanto o lado barroco da obra de Rolla como uma sensação de quase-escatologia e escárnio presentes nos registros da performance “Canibal” (2004) e nas instalações com porcelana e elementos orgânicos reais, como “Pano de Mesa” ou “Pic Nic”, ambas de 2000. Na primeira, uma realista toalha de mesa em porcelana está encharcada de vinho verdadeiro entornado desde uma taça, enquanto que na outra detalhes como cascas e restos de tangerina em porcelana disputam, sobre uma toalha também em cerâmica, a realidade da cena com cebolas reais e mais vinho – que apodrecem enquanto as esculturas permanecem frescas. Marco Paulo Rolla propõe um diálogo entre vanitas e a perenidade da matéria inerte, em esculturas constituídas de objetos do mundo, biscuit e alimentos como geléia, que reproduzem eventos passados cuja visualidade e temática são inspiradas nas naturezas-mortas de mestres da pintura. As peças confundem a percepção ganhando corpo no imaginário do público, e se colocam como reflexão sobre os limites da representação e da ficção na vida ou na arte. Para além de discutir os suportes e materiais que utiliza Rolla discute o tempo de duração das coisas, e estampa “uma ironia e uma crítica ao fetiche capitalista do consumo”, segundo Cristiana.

“Cotidiano Radical” comenta lírica e criticamente o banal das nossas rotinas cansativas e aparentemente sem sentido. A mostra é um todo coeso, com trabalhos cheio de detalhes a serem explorados. Não há excesso nem falta de assunto, trata-se de uma individual redonda, fruto de uma parceria entre uma curadora e um artista conhecidos pelo cuidado com que levam à público suas produções.

Canibal Foto Ding Musa
Canibal. Registro de performance. Foto: Ding Musa

Publicado em Jornal O Globo, Segundo Caderno, Novembro de 2015.

Um Canto, Dois Sertões: Bispo do Rosário e os 90 Anos da Colônia Juliano Moreira

Casaco bordado por Artur Bispo do Rosário. S/d. Foto: Wilton Moltenegro
Casaco bordado por Artur Bispo do Rosário. S/d. Foto: Wilton Montenegro

A cidade do Rio de Janeiro é uma das capitais com mais instituições artísticas do país, sejam elas de natureza privada-pública ou apenas pública, com portes e programações diversas, algumas com objetivos bem singulares. Em muitos bairros cariocas, centros culturais e museus pequenos em condições precárias representam o único meio de contato de milhares de habitantes com obras de arte. O Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea, na Colônia Juliano Moreira, pertencente à prefeitura, é uma dessas instituições com parcos recursos e ambiciosa missão, cuja importância vai além do seu espaço expositivo. Batizado com o nome do ex-interno em 2000, 11 anos após a sua morte, o espaço abriga a obra plástica de Bispo, e é um pólo de cultura e memória único, instalado em uma região carente de opções culturais que vem sofrendo mudanças profundas com a urbanização impulsionada pelas Olimpíadas.

Em 2002 o Museu Bispo do Rosário teve agregado “Arte Contemporânea” em seu nome e hoje estabelece parcerias externas, contando com uma reduzida equipe para desenvolver projetos que trabalhem “questões básicas sobre a importância do acervo de Bispo, o público-alvo, a acessibilidade e as articulações que Bispo pode fazer, por meio da arte, com diversos campos do saber, como a saúde mental, a psiquiatria, a antropologia”, de acordo com a diretora Raquel Fernandes. Atualmente o curador e ex-diretor do Centro Cultural São Paulo, Ricardo Resende, cuida do extraordinário legado abrigado na instituição, ao mesmo tempo em que novas exposições de arte contemporânea que dialogam com o acervo e a memória da Colônia, começaram a ser desenvolvidas por curadores convidados, através de financiamentos oriundos de editais.

Assim surgiu a atual exposição em cartaz até Fevereiro de 2016, Um Canto, Dois Sertões: Bispo do Rosário e os 90 Anos da Colônia Juliano Moreira, com curadoria de Marcelo Campos. A mostra reúne 150 peças de Bispo do Rosário a outras 50 obras de dez artistas contemporâneos como Efrain Almeida, Caio Reisewitz, Marta Neves e Lin Lima, e ocupa diversos espaços do prédio que foi sede administrativa do complexo, como um antigo refeitório e o saguão de entrada. Entre peças do acervo e projetos específicos para a ocasião, o projeto comenta os dois universos centrais na vida de Bispo: a Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, onde viveu por cinquenta anos, e Japaratuba, em Sergipe, sua cidade natal, que seriam, na concepção de Campos, “os dois ‘sertões’ de Bispo do Rosário”.

Atravessar a cidade ou a Zona Oeste para visitar o Museu e esta exposição é uma oportunidade para adentrar no universo delirante e poético de Bispo do Rosário e ver possibilidades de interação de sua obra com a produção artística atual. Além disso, a visita nos faz ler um capítulo da história social do Brasil moderno, marcado pela exclusão e preconceito simbolizados nos antigos complexos manicomiais que se tornariam campos de concentração de doentes mentais em muitos países. Embora a exposição não toque especificamente neste ponto, obras como a do baiano Willyams Martins, que recria metaforicamente a cela de Bispo do Rosário utilizando-se de decalques das paredes de pavilhões desativados na Colônia, nos dão uma dimensão do sofrimento e clausura experimentados lá. Ao mesmo tempo, é também possível fazer um passeio até a cela que abrigou Bispo por anos, no pavilhão que ainda resiste, vazio, para ter ainda mais noção das tétricas experiências vividas pelos internos, cuja dor poucos conseguiram transmutar em criação artística, como fez Artur Bispo.

Em meio a gentrificações e glorificação da indústria cultural, o Museu Bispo do Rosário é uma resistência. A Colônia, hoje em processo de desativação, vê sua área antes rural se tornar urbe e a paz ainda reinante ser cortada pela futura via expressa Transolímpica. Se os ventos do progresso são inevitáveis, que estes então ajudem este espaço cultural a se tornar mais conhecido e estruturado, dando ao legado de Artur Bispo do Rosário, exposto até na 55a Bienal de Veneza, o cuidado que merece e à população um Museu de qualidade.

Publicado em Jornal O Globo, Segundo Caderno, Outubro de 2015.

Opinião 65: 50 anos depois

WESLEY DUKE LEE_Crédito Sergio Guerini (1)
Wesley Duke Lee. Déc. de 60. Foto: Sérgio Guerini

Há exatos 50 anos, entre 12 de agosto e 12 de setembro de 1965, o Bloco Escola do Museu de Arte Moderna recebia a exposição “Opinião 65”, idealizada pelo marchand Jean Boghici com a organização da crítica Ceres Franco. A coletiva reunia 29 artistas entre brasileiros, europeus e argentinos, incluindo jovens que representavam uma nova linha de frente estética, conceitual e política nas artes do país. O evento exibia obras contestatórias viscerais como as assemblages de Antonio Dias aos 21 anos, as peças irônicas e politizadas de Rubens Gerchman e o inédito – hoje icônico – Parangolé de Hélio Oiticica, entre outros que delineavam a vanguarda de então.

Para comemorar o meio século deste acontecimento, a Pinakotheke Cultural, em Botafogo, traz a mostra “Opinião 65: 50 anos depois”, sob a curadoria de Max Perlingeiro, procurando resgatar a memória e o clima de experimentação e engajamento plástico que se instaurava no momento, em diálogo com processos artísticos e discussões nas artes pelo mundo, em torno de uma nova figuração. A exposição conta com 59 obras, sendo 17 trabalhos que estiveram na mostra original, e apresenta vídeos-documentários (um deles feito especialmente para esta ocasião) e fotografias, réplicas de manuscritos de Oiticica e textos de jornais entre outros documentos. Embora o local seja algo sofisticado demais para transmitir com contundência o ambiente de ruptura evocado em 1965, os trabalhos expostos, datados da década de 1960, se mantiveram pulsantes em sua força plástica e verve política, causando surpresa quando relembramos da censura que começava a reinar por estas praias naqueles tempos pós-Golpe Militar. Afinal, apesar de antigas, no fundo são obras de jovens artistas preocupados em discutir sua sociedade e o que entendiam como arte contemporânea há 50 anos.

Perlingeiro esteve 1 ano dedicado à pesquisa e o resultado é um conjunto de trabalhos significativos para a compreensão não apenas de um fato, mas de um momento histórico do país e nossa tenra história da arte. Além dos já citados, vêem-se obras raras de Gastão Manoel Henrique, Waldemar Cordeiro, Wesley Duke Lee, Juan Genovés, Ivan Serpa e outros. A museografia traz detalhes como fragmentos de textos críticos da época plotados ao lado das obras, que contextualizam o modo como era recebido criticamente o artista. Estes e demais elementos dão o cenário de outrora e fazem a visita instigante, ainda que só uma parte dos trabalhos expostos tenha de fato participado de “Opinião 65”.

“Opinião 65: 50 anos depois” tem desdobramento no MAM curado por Luis Camillo Osório, com obras dos anos 1960 do acervo do Museu e da Coleção Gilberto Chateaubriand, incluindo três peças presentes no evento original. O MAM tem natural afinidade com a exposição, acolhendo em casa os bons trabalhos históricos, e a seleção traz peças bastante vistas como as de Gerchman e Roberto Magalhães, e outras potentes e menos conhecidas como “Objeto Popular” (1966), de Pedro Escosteguy. Além disso, os documentos de época, em especial críticas e resenhas de jornais, e uma seleção de cartazes de filmes dos anos 1960, da coleção da Cinemateca, são ponto alto. Em ambos os locais é possível assistir ao breve documentário realizado pela Pinakotheke Cultural, contudo no MAM as condições acústicas são menos favoráveis. Um destaque é o filme “Vida Pública” (1967), com roteiro de Escosteguy, onde se assiste a cena e a discussão de artes de então. “Opinião 65: 50 anos depois”, em seus dois blocos, é uma mostra de cunho histórico sobre os passos da Nova Objetividade brasileira, e faz refletir acerca das relações entre arte, experimentação e engajamento ontem e hoje.

Porta Estandarte de Hélio Oiticica com passista da mangueira, 1965. Arquivo Projeto HO
Bandeira-estandarte de Hélio Oiticica com passista da mangueira, 1965. Arquivo Projeto HO