A utopia é possível – Revista Select 10, 01/2013

Publicado na revista seLecT10 / crítica  – Janeiro de 2013

A utopia é possível

Daniela Labra, de Barcelona

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“O mundo está se preparando para uma metamorfose dos deuses. Abandonam-se os valores e arquétipos da cultura vigente e adotam-se novas formas de vida nascidas de outra visão do mundo”. Assim começava o manifesto da Instant City, uma das proposições do VII Congresso do ICSID – International Council of Societies of Industrial Design, ocorrido em outubro de 1971 na outrora idílica ilha de Ibiza – ou Evissa. O evento foi organizado pela Agrupació de Disseny Industrial del Foment de les Arts Decoratives (ADI/FAD), baseada em Barcelona, e teve um formato revolucionário, cujo objetivo era transformar um encontro profissional convencional em um acontecimento experimental e libertário, sem precedentes na Espanha – que amargava os últimos anos da obscura ditadura de Franco.

O congresso, que durou três dias, foi inspirado pela contracultura dos anos 1960 e fazia referência ao espírito livre da época, marcado por eventos artísticos, ativistas e políticos, que reuniam multidões de jovens nascidos no pós-guerra, desejosos de um mundo mais criativo, amoroso e pacífico. Seus organizadores, a maioria estudantes, pretendiam reconsiderar os clichês dos congressos de então: formais, tediosos, com crachás, tradutores e cafeterias impessoais. A meta era potencializar o intercâmbio de ideias e discussões entre profissionais e alunos de design industrial – uma nascente disciplina – com as formas mais inovadoras da arte e da arquitetura, e assim obter um resultado vivo e transformador. Apesar de inicialmente criticado por membros do conselho internacional, o modelo experimental do ICSID Evissa foi levado a cabo, tornou-se referência no meio e incentivou novas propostas, posteriormente impulsionando Barcelona como uma das capitais mundiais da arquitetura e do design.

Para rememorar tal evento e sua importância, o Museu de Arte Contemporânea de Barcelona (MACBA) organizou a exposição La Utopía Es Posible, que esteve em cartaz até 20 de janeiro, sob curadoria de Daniel Giralt-Miracle e Teresa Grandas. De museografia simples e despojada, a mostra ocupou um grande salão branco com displays cheios de documentação, além de projeções e fotografias dispostas diretamente sobre as paredes. No chão, televisores em racks brancos passavam documentários e entrevistas, enquanto pufes em tons laranja, amarelo e vermelho convidavam o espectador a se recostar para observar as imagens projetadas e relaxar, ao som de uma trilha sonora que incluía All Along the Watch Tower, de Jimi Hendrix.

Embora Ibiza seja hoje um símbolo do hedonismo capitalista, em 1971 a ilha – cuja ocupação remonta à Idade do Bronze (2000-1600 A.C.) – apenas começava a ser explorada pelo turismo de massa, sendo uma localidade basicamente rural e pesqueira. Mas já na década de 1930, alguns intelectuais, entre eles Walter Benjamin, se refugiam ali e confrontam, pela primeira vez, a vanguarda moderna e transgressora da época a com a tradição pacata do vilarejo.

Os atributos históricos, culturais e naturais de Ibiza determinaram sua escolha como sede do VII ICSID, que teve lugar na Cala de Sant Miquel, uma baía da costa noroeste da ilha, longe do centro urbano. Para os organizadores, a praia bucólica seria um refúgio para a produção intelectual e criativa, e isso contrastava radicalmente com Montreal ou Londres, cidades-sede anteriores, que proporcionavam mais a dispersão do que a integração.

No que tange à programação do congresso, atividades como palestras e debates foram organizadas em salas de reuniões nos dois hotéis existentes na Cala, mas também podiam acontecer ao ar livre, espontaneamente. Nesses encontros, discutia-se design, urbanismo, arte, novas tecnologias e pensamento contemporâneo. images

A busca por experiências criativas e enriquecedoras era um mote norteador do congresso e, em paralelo às apresentações e debates, houve uma série de proposições que vinculavam o design a outras linguagens. Uma das mais significativas foi Instant City, projeto criado por José Miguel de Prada Poole para facilitar o alojamento dos jovens que fossem ao congresso. Professor da Universidade Politécnica de Madrid e especialista em arquiteturas infláveis, Prada Poole mobilizou os conhecimentos para tornar possível uma cidade de plástico, efêmera, que não deixasse rastro e que fosse baseada em um sistema de construção bastante simples: cilindros e esferas que se interconectavam e podiam crescer segundo as necessidades. De acordo com o arquiteto, como não havia orçamento, a solução precisava ser econômica e, portanto, uma estrutura sustentada por ar – a mesma matéria dos sonhos – era uma saída perfeita.

Instant City foi feita com plástico PVC doado por uma multinacional e erguida pelo esforço coletivo de voluntários usando como ferramentas grampeadores comuns e tesouras. O trabalho, associado ao ócio criativo, durou menos de uma semana. Para convocar os “operários”, os então alunos de arquitetura Carlos Ferrater e Fernando Bendito, hoje destacados arquitetos, redigiram, junto com o escritor Luis Racionero, o Manifiesto de la Instant City, que foi difundido internacionalmente. O manifesto chamava estudantes a participarem da construção dessa cidade temporária que metaforizava um novo modelo social, em que a cooperação seria um motor para gerar comunicação e integração entre as pessoas.

O sistema de sinalização de Instant City era precário e, por isso mesmo, criativo. Assim que ficava pronta uma parte da estrutura, indicações eram escritas com pilot atômico sobre a lona plástica. Para entrar no edifício mole, atravessava-se uma fenda, o que alguns participantes relataram como sendo uma experiência em si, como entrar no “útero/vida”. Tal descrição condiz com o espírito poético da época, quando artistas como Hélio Oiticica ou Maurice Agis propunham vivências em espaços que ampliavam a percepção sensível. Do mesmo modo, croquis de arquiteturas utópicas já surgiam em projetos artísticos de coletivos como Archigram, Haus-Rucker-Co. e UFO, sendo conceitualmente inspiradores aqui.

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Estima-se que cerca de 2.500 pessoas foram ao congresso, e que a maioria passou pela Instant City, para dormir ou participar de festas psicodélicas. Apesar do sucesso, participantes recordam que as escassas instalações sanitárias ajudaram a promover um certo caos e que, ao fim do evento, centenas de metros de plástico usado foram doados, deixando Ibiza repleta de restos coloridos de um material que ainda não era tão temido ecologicamente nem banalizado como agora.

Outro ponto alto foi o jantar de inauguração do encontro, que consistiu em uma cerimônia-happening multicolorida, na praia, organizada pelos artistas Antoni Miralda, Jaume Xifra e Dorothée Selz, com a colaboração do músico Carles Santos. Enquanto soava música e circulavam bebidas, uma paelha multicor foi servida aos presentes, que vestiam máscaras e indumentárias das mesmas cores da comida. E, por ser um ato aberto, artistas e público confudiam-se formando um só corpo lúdico participativo.

Dentre as outras proposições artísticas que pontuaram o congresso do ICSID, estavam duas esculturas “moles”. A primeira era a Vacuflex-3, de Antoni Muntadas e Gonzalo Mezza, feita com um largo conduíte industrial de plástico flexível, com mais de 150 metros de comprimento, para ser manipulado pelo público, no mar e na areia. Além desta, outra obra de grande impacto visual foi o inflável modular branco de Josep Ponsatí, com cerca de 40 metros, que flutuava imponente sobre o mar ao ser ancorado no meio da baía. images inflable

Como afirmam seus idealizadores, o ICSID de Ibiza foi uma experiência de socialização que unia noções de trabalho coletivo com reflexão intelectual. O alvo principal era a busca por novos modelos de comportamento e criação. Os organizadores espanhóis acreditavam no modo hippie de viver e viam nessas ações uma crítica contra o puritanismo e o provincianismo instalados pela ditadura. Encontravam, assim, um modo de afirmar seu “europeísmo” e de anunciar o começo de um novo ciclo da cultura moderna.

Embora o legado material do ICSID Evissa não tenha ido além de documentos e registros, o que ficou foram as relações semeadas. E hoje, mais de 40 anos depois, vemos que diversas ideias contidas ali se mantiveram na pauta contemporânea: sustentabilidade, participação, solidariedade, novas relações entre indústria e sociedade, a utopia da natureza livre e a arte como experiência educativa libertadora.

No momento em que a Europa é assombrada por uma crise econômica sem perspectivas de acabar, e a Espanha vê, nesse contexto, o acirramento de discursos separatistas, a memória deste evento libertário é um alento. Ela nos recorda que o “fim das utopias” é em si um delírio utópico, pois, enquanto houver vida humana, haverá sonho e perspectivas de transformações sociais, estéticas e éticas, ainda que pareçam longínquas.

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