Entrevista com Daniel Lannes

Daniel Lannes. Desertor. Óleo sobre tela. 250 x 350 cm. 2011

Por ocasião da individual de Daniel Lannes, “Dilúvio”, na galeria Luciana Caravello, no Rio de Janeiro, em setembro de 2012, foi lançado o catálogo do artista com uma entrevista que abordou questões da história da arte, pintura contemporânea, processo de pesquisa e “brasilidades” possíveis.

Entrevista de Daniela Labra com Daniel Lannes

Galpão da EBA/Fundão/ Rio de Janeiro

14/08/2012

Daniela Labra – “Dilúvo” é o nome da sua exposição. Nós havíamos conversado sobre as referências que você traz no seu trabalho e o que te levou a escolher esse título. Acabamos chegando em um texto sobre a pintura de Leonardo Da Vinci.

 Daniel Lannes – Eu estava lendo para a minha dissertação de mestrado um livro sobre gêneros da pintura, e caiu esse texto nas minhas mãos, que é um recorte do Tratado de Pintura do Leonardo, e é um capítulo no qual ele descreve a forma de se pintar um dilúvio. É quase hilário, do ponto de vista didático, por que ele ensina o pintor a pintar, entre outras coisas, a linha do horizonte, como se deve pintar as montanhas a certa distância, como pintar o ar, e ele então ensina, de certa forma, como pintar um dilúvio. E a descrição do modo de pintar é uma coisa frenética, ele descreve uma série de acontecimentos catastróficos como enchentes, trovoadas, galhos voando, e no fim o texto acaba virando uma espécie de um conto, por que se torna tão confuso no final, tão minucioso e detalhado, que se torna quase um romance, por que são tantos os adjetivos e superlativos, e indicações do que colocar no primeiro e segundo plano, do que está acontecendo, caindo, que realmente é quase uma ficção. E eu achei curioso, não só o fato dele ensinar como pintar um dilúvio, mas também o fato do dilúvio ser, na época, também um tema recorrente – não só o Leonardo, mas Giorgione e o próprio Michelângelo, retratavam o dilúvio que, para a época, era a ideia de um fim, de que o mundo iria acabar em uma tragédia. Assim como hoje há essa ideia do fim em 2012, na época achava-se que o dilúvio era algo que estava para acontecer, havia essa espécie de premonição. Então era um tema.

 Labra – Falando em tema, esse é um assunto interessante quando falamos de pintura contemporânea. Uma coisa que observo, em especial nas pinturas figurativas, é um interesse por temas do cotidiano, banais como um lápis sobre a mesa – o que é também uma questão da própria arte contemporânea, que chegou a temas que são pequenas coisas, ao contrário de um dilúvio, que tem uma dimensão épica que foi sendo desconstruída pela arte moderna. No entanto, no seu trabalho, parece que você aspira a essa dimensão épica perdida… Como você pensa isso na sua obra e que análise faria das temáticas que observa na pintura contemporânea?

 Lannes – A pintura contemporânea hoje abraça não só a narrativa figurativa como também a abstrata. Hoje em dia não há mais esse duelo de escolas – inclusive após um artista como Gerhard Richter isso fica ainda mais explícito, como ele desconstrói esse muro entre abstração e figuração. Mas eu acho que há sim uma certa tendência, depois de artistas como Richter ou Luc Tuymans, da pintura narrativa se voltar também para temas banais como você citou, um lápis sobre a mesa. Isso é legal mas não acho que seja uma exclusividade da arte contemporânea. Em Manet, que Greenberg dizia ser o pai da arte moderna, que começa na pintura, tinha também esse enquadramento para coisas banais. Ele pinta um aspargo sobre a mesa e era isso; ela pinta uma flor caída, e era isso. Então a desconstrução épica já estava ali.

 Labra – Sim. Mas também quando havia uma aspargo sobre a mesa ou até o sexo feminino, em Courbet, aquilo era uma experiência, cercada de um teor de descobertas que tentava justamente desconstruir o épico e falar da vida íntima. E hoje vivemos o esgarçamento disso…

 Lannes – Digamos que naquela época pintar um aspargo era uma atitude épica. Heróica.

Labra – Heróica! Então será que hoje fazer o caminho inverso pode ser algo tão surpreendente quanto já foi pintar um aspargo?

 Lannes – Sim, pode ser. Mas acho que isso tem que ser verdadeiro, e vai depender de cada um. No meu caso, posso dizer que sou uma pessoa “de outro tempo”, por que eu tenho interesse em coisas de época, tanto no cinema, quanto na indumentária. Esteticamente isso me interessa, eu gosto de literatura de época, então eu acho que tudo isso se reflete na escolha das imagens da minha pintura. E essa ambição épica também tem um lado meio patético, anacrônico, de querer soprar na pintura hoje uma situação épica, depois dela já estar morta. Mas acho que é isso, de uma tentativa de implantar uma situação épica na pintura ou de retomar temas que eram épicos, o que me move, esse é o desafio para mim, o que gera o embate com o quadro; sem isso acho que eu não teria por que pintar. Eu não iria pintar uma poeira sobre a cadeira à princípio. Não me interessa. Pode interessar a outros, mas como eu disse, tem que haver verdade. Essa aspiração épica juntamente a temas e situações banais é o que me faz querer ir para o atelier pintar. Não sei se recorrer ao épico seria hoje a grande novidade, mas para mim é o que me interessa e o que eu gostaria de ver em pintura – e é por isso que eu faço.

 Labra – E ainda sobre temas, na sua pintura também parece haver a vontade de tocar em assuntos que remetem a uma ideia de Brasil e brasilidade, pensando no próprio clichê que essa palavra nos remete. Você brinca com isso: faz uma pintura que é uma floresta (exibida nesta exposição), e ela se coloca tanto como a demonstração de um virtuosismo, da técnica, mas eu também interpreto como sendo uma ironia, relacionada à própria narrativa romântica com seus heróis indianistas, presentes tanto na pintura como na literatura. Por outro lado, vejo também uma brincadeira com a ideia de brasilidade quando ela é evocada na imagem de uma mulher do povo, gorda, de biquíni, tomando banho de piscina feliz da vida e é isso aí: viva o povo brasileiro. Você também tem trabalhos que retratam o interior do Museu Nacional de Belas Artes, onde reproduz pinturas dentro da sua pintura. Pode falar mais sobre isso?

 Lannes – A palavra “brincar” me dá muito medo, por que pode ser redutor falar que “ele brinca, revisita temas” da brasilidade ou da pintura brasileira… Por que na verdade a brincadeira é a coisa mais séria do mundo. Gosto muito de um adjetivo que o Milton Machado uma vez falou que percebia nas minhas pinturas: ele disse perceber uma promiscuidade, e eu gostei dele ter notado isso. Por que, como você falou, todo esse ideário indianista misturado a esse passado que a gente tem, acadêmico, da pintura brasileira, me parece uma coisa meio confusa para alguém da minha geração, por que eu não vejo esse tipo de pintura exercendo um papel didático. Se eu fosse um alemão, por exemplo, eu certamente iria ter a história da pintura alemã como um respaldo ou um passaporte para que eu pudesse pintar hoje cercado por uma tradição que me legitimaria como pintor, se eu escolhesse um tema figurativo. Há toda uma tradição de pintura, desde os românticos, desde o Friedrich ou indo mais atrás com Holbein, todos esse caras me legitimariam como pintor. Mas, ao mesmo tempo, e pensando em um outro artista contemporâneo que usa a pintura figurativa e que é americano, o John Currin, ele diz que toda essa tradição que ao mesmo tempo legitima, também poda, por que se carrega um fantasma, que, como ele mesmo diz, faz os europeus jovens terem medo de pintar – embora pintem – mas há uma tradição em volta que pode ser castradora, por que já se sacralizou. Então o John Currin, como americano, diz se sentir mais livre para poder beber dessas fontes européias, por que como americano ele não deve nada a isso, ele pode encarar essa situação de forma mais experimental, e que é justamente como eu encaro. Como a nossa tradição de pintura não é muita, pois ela começa, grosso modo, no século 19, e ela não é tida em nosso próprio país como uma referência para os artistas contemporâneos que querem trabalhar com pintura – eu não vejo ninguém que quer trabalhar com arte contemporânea, da nossa geração, usando o Pedro Américo ou Vitor Meirelles como pais da pintura figurativa brasileira de uma forma positiva, de uma forma que encoraje alguém a se debruçar sobre esse tema. Eu acho que então isso ficou um tema interessante, por que é de certa forma mal visto fora dos âmbitos estritamente acadêmicos. Eu nem sei dizer se eles eram mesmo bons pintores, acho que sim, tiveram seus méritos, mas eu acho que sendo brasileiro e querendo me inserir nessa seara da grande pintura figurativa épica, não sendo europeu, acho que também posso encarar isso de uma forma mais experimental, sem carregar uma tocha e podendo ter um trânsito mais maleável dentro desse universo. Nesse sentido, o que sai mesmo é uma coisa mais experimental – e que tem até a ver com a nossa tradição na arte contemporânea. Desde o Hélio Oiticica é no experimentalismo que está o diferencial do que trazemos para o universo da arte.

Labra – O Modernismo renegou legados como o de Pedro Américo, por exemplo, pois não seria uma referência para a arte brasileira moderna que estaria por ser construída. Os acadêmicos seriam um pastiche da arte moderna européia que chegou aqui desassociada de um processo de modernização local. Por outro lado, essa pintura épica brasileira era uma narrativa de ficção elaborada para vender uma ideia e um sentimento de nação e assim, destruir essa matriz era importante para se propor o novo. Talvez hoje, passados mais de cem anos, já seja possível retomar esses artistas acadêmicos e tê-los como referências dentro de uma história da arte brasileira. Mas, voltando à sua obra, você se baseia em referências existentes no mundo real, extraídas de livros, da TV, de revistas, propagandas, etc. Você pode falar um pouco sobre o processo de construção ficcional na tua pintura?

Lannes – No meu caso, uma boa pintura tem que ser uma boa mentira. Mentira em vários sentidos: é uma pintura e portanto é uma situação que não existe pois aquela imagem nunca aconteceu. Diferente da fotografia, ela tem que ser uma mentira no sentido de ter que ser construída através de massas de cor ou seja, no fim ela é absolutamente abstrata, e ela tem que ser uma mentira no sentido da crônica. Se eu transpusesse coisas do real sem nenhum filtro fictício, eu não veria muito sentido em pintar, pois fotografar esse real para mim já bastaria. Então, se eu me proponho a contar algo desse real, então acho que devo contar um bela de uma mentira, tanto uma mentira pictórica, no sentido da matéria, como no sentido do conteúdo. E assim, eu acho que me coloco na situação de um cronista visual, e esse cronista, para um artista que começou a estudar arte depois da Pop Art, sabe que a crônica visual dele não é uma crônica mimética, é metalinguística, principalmente se ele usa a pintura para apresentar o real. Ele não é mais como Debret era, na missão que veio ao Brasil, que tinha uma função didática de capturar imagens do real que dessem informações sobre essa terra recém-descoberta. Então havia esse comprometimento com o real, com a mímese. No meu caso, depois de Manet, da Arte Moderna, do Andy Warhol, depois do fim da arte, você se propor a fazer uma crônica visual é ser artista. O Debret, quando fazia sua crônica visual brasileira, não estava sendo exclusivamente artístico, pois esse não era o papel do cronista pintor viajante. Eles tinham uma função pragmática de elaborar um “inventário visual”. Mas, hoje em dia, se propor a fazer uma crônica visual pintada, pode ser por sí só uma atitude artística, justamente por que pode ser uma mentira. E para mim a pintura tem que ser uma boa mentira, como já disse, e a mentira precisa de um distanciamento crítico. O que essa pintura vai representar para as pessoas? Ela não é mais um retrato fiel da sociedade, tal como a crônica se propunha a contar, ela é uma crônica metalinguística por que quando você pinta algo, já está embutida ali toda a questão da morte da pintura, de se estar pintando algo que não necessariamente condiz com a realidade, a própria ficção entra no meio. Então acho que tudo isso influi para que a crônica visual hoje, especialmente no meu caso, esteja calcada numa boa mentira.

Labra – E falando agora do seu processo. Você começa pintando, há quase 10 anos, com uma fatura bem limpa, realista, preciosista até, e aos poucos isso foi ficando mais borrado, nublado e os temas também foram mudando. Como acontece esse processo?

 Lannes – Acho que isso tem a ver com as “horas de vôo”. Depois de 10 anos estudando pintura, e encarando isso como um ofício, eu comecei a perder algo que havia no início que era como uma espécie de provação: se propor a executar uma ação e, como a proposta era realista, eu tinha uma preocupação em dar conta da parte artesanal, que é algo que fica muito latente se não for “bem” executada nesse caso. E é algo que para um jovem começando fica na cabeça, por que tem que provar para si mesmo que sabe transpor para um quadro uma certa imagem com uma certa definição. Mas, com o tempo, essas preocupações vão ficando para o segundo plano, por que você começa a ver que no fundo, a mentira pictórica é o que sustenta a pintura. Seja abstrata ou figurativa, você precisa organizar essas massas de cor com uma certa inteligência visual, pois é ela que fala mais alto no fim. Você pode ser muito virtuoso mas fazer um trabalho completamente burro visualmente; ou você pode ter uma certa técnica, e usar esse mínimo que você possui, com inteligência visual. Então acho que a inteligência visual é o divisor de águas. Depois de ter isso claro para mim, comecei a encarar a pintura com mais leveza. Leveza essa que me permite pintar e não ficar tão preso a um modelo; pintar e deixar que aquilo seja realmente uma pintura e que ela se apresente como tal, com suas características instrínsecas da tinta, da pincelada. E também o gosto foi mudando. Eu comecei a apreciar mais qualidades da pintura abstrata, e com isso fui cada vez mais me distanciando daquele realismo clínico, cirúrgico, onde não há espaço para o acidente. Hoje eu cada vez mais abraço esses acidentes da pintura que são, de certa forma, ligados ao universo abstrato, e acho que conseguir orquestrar esses acidentes com a construção de um tema, uma narrativa, é o grande desafio. E quando isso acontece, eu acho que a pintura é bem sucedida.

Labra – E qual é a tua formação?

Lannes – E sou publicitário. Fiz comunicação social mas antes fiz dois anos de desenho industrial. Nesse meio tempo também estudei um ano na escola de belas artes na Universidade Estadual de Nova York como bolsista. Mas minha formação universitária é de bacharel em propaganda. Agora estou terminando o mestrado na EBA (Escola de Belas Artes da UFRJ)

Labra – E agora uma exposição individual como artista plástico. Fala um pouco sobre ela, como foi o processo de elaboração das obras, da ideia…

Lannes – Eu escolhi o tema do dilúvio, movido por esse texto do Da Vinci que me deixou instigado, e apenas continuei com o que já estava fazendo. Venho trabalhando imagens que retiro de referências reais, atuais, de fotos banais, além de interesses épicos, históricos, de pintura de História mesmo, e resolvi me debruçar sobre a ideia do dilúvio. Dentro do meu banco de imagens que coleciono há anos, eu comecei a direcionar essas imagens para uma narrativa que trouxesse essa ideia do dilúvio. Essa ideia se apresenta nessas pinturas da exposição tanto como tema, em situações de dilúvio climático, mas também como uma forma pictórica; a própria tinta funcionando como uma espécie de enchente ou de água invadindo o espaço da pintura, e o dilúvio também no sentido do caos: a própria pintura traz uma coisa caótica que não necessariamente tem a ver com a chuva, mas sim com uma atmosfera de dilúvio, uma situação de inundação, de perda de controle.

Labra – Você gosta dessa perda de controle?

Lannes – Eu gosto. Mas morro de medo dela.

Labra – E como você vê a questão da perda de controle, da falha, do erro que de repente é incorporado.

Lannes – Na pintura ou na vida?!

Labra – Como você quiser… Ambos!

Lannes – Acho que tem a ver falar da pintura e da vida! Por que a vontade de querer controlar tudo na pintura, ao menos na minha trajetória, está sempre ligada a uma vontade de querer controlar tudo na minha vida, é uma espécie de neurose. E acho que a perda de controle na pintura demonstra também uma certa maleabilidade na minha vida fora da pintura, por que a partir do momento em que eu abraço os acasos na pintura isso mostra um desprendimento que se reflete também no meu comportamento. Não que eu vá “deixar a vida me levar”, não é isso, mas acho que está tudo junto. Se você começa a permitir no trabalho, no caso da pintura, que acidentes aconteçam, isso te faz perceber que também na vida extra-atelier se começa a ter uma certa posição diante dos fatos, de aceitá-los na condição patética e implacável de que não é possível se controlar quase nada na vida. Então quando se resolve isso – ou em parte isso, por que quase ninguém resolve essa falta de controle, chega-se a uma certa resignação e, ao menos para a pintura, isso é bom, por que passa-se a deixar o quadro levar você e não mais você levar o quadro no cabresto; ele começa a te dar dicas para onde ir, e é bom por que isso tira um peso das suas costas.

Labra – E as tuas referências como artista? Quais pintores você acompanhou e acompanha no momento? Por que te interessam?

Lannes – Hoje em dia tem o John Currin, que eu acompanho já há alguns anos; poderia citar o Eric Fischl que é um grande contador de histórias da sociedade americana e um pintor por excelência; poderia falar de Albert Oehlen, que tem uma narrativa mesclada com questões da pintura abstrata; o Daniel Richter que é um artista que gosto tanto da pintura quanto dos temas; o Adrian Gheine, um pintor bem novo, romeno, com uma pintura e um tema bem interessantes. Mas, como falei, eu tenho um lado anacrônico – na pintura não tem como não ser anacrônica, você está sempre com fantasmas do século passado te rodeando – então eu olho muito para Delacroix, por exemplo, para a pintura de Jacques-Louis David, quem eu acho que de alguma forma é pai da pintura figurativa brasileira. Pelo menos eu consegui chegar nesse caminho louco por que, se Debret era assistente do David, e o Debret veio ao Brasil fundar a Imperial Academia de Belas-Artes, nós temos então o dedo do David na nossa formação embrionária. Então eu hoje consigo pintar e me sentir pertencente à escola neoclássica ou pelo menos oriundo dela, de alguma forma meio bastarda! Eu olho muito para os pintores românticos, o Caspar David-Friedrich; o Ingrès, pintor neoclássico, pela elegância; Manet, sem dúvida, é um monstro, Tintoretto, pela coisa delirante, pela crônica, pela forma de conseguir trabalhar o tema e a pintura de um modo planar muito inteligente, que se afirma como pintura e como história, Ticiano, por toda a elegância e sensualidade com a qual ele impregnou a pintura. Poderia falar de outros, mas esses são os que eu olho muito.

Labra – É interessante você apontar essas referências que são de vários tempos. E isso me faz pensar na “morte da pintura”, que na verdade reflete o mal-estar do momento em que se percebeu que a pintura não era mais a tal, com a chegada de outras mídias. Mas a pintura não morreu nem morrerá por que ela tem todo um peso de uma tradição e uma história – e você coloca que fazer pintura é sempre anacrônico, e não poderia ser diferente. Com essa espécie de “morte”, a pintura também sofreu uma banalização e nos trouxe uma série de más-pinturas que são ruins não tanto pela falta de técnica, mas por uma falta de consciência da história da pintura. E assim nós temos qualquer coisa sobre tela que imediatamente é chamada de “pintura”, e que poderia ser uma estampa de almofada – por que simplesmente não se pensa como pintura. E fazer pintura como tal, é muito difícil. A pintura hoje é ainda uma prima-donna, mas decadente, é uma senhora aristocrata cheia de botox, que mora num palacete rodeado de espigões e viadutos enfumaçados por que a cidade cresceu – e ninguém vai derrubar a sua casa por que ela é patrimônio da humanidade…

Lannes – É uma boa imagem… E eu acho interessante isso que você fala de “qualquer coisa sobre tela”. Pintar hoje um aspargo ou um lápis sobre tela pode ser muito bom ou soar como charlatanismo. E o que faz um ser bom e outro já não ser, é uma coisa que não sei te explicar… Mas acho que é justamente o conhecimento que o artista tem de história da arte. Isso fica visível, fica aparente quando alguém faz algo com know-how e sem know-how. A maneira de pintar muda, e a imagem muda, embora os dois abordem o mesmo tema. Então eu acho que isso fica muito cristalino, e você pode notar: essa cara olha para o passado e pinta um lápis sobre a mesa; ou esse cara está pintando um lápis sobre a mesa por que ele ouviu falar que é legal pintar um lápis a óleo sobre a tela. Quem conhece o peso e se aventura nessa tradição, se debruça e fica atormentado, e olha para essa tradição vai invariavelmente possuir uma inteligência visual que se refletirá nesses objetos pintados sobre a tela. Aí fica clara a diferença de quem olha para trás e quem não olha.

 Labra – Então concluindo… A mensagem para a as futuras gerações…

Lannes – Vamos olhar pra trás! E não é uma coisa mandatória, careta, é uma coisa que qualquer artista tem que fazer, sejam os pintores ou aqueles que trabalham com arte relacional. Se não, vai ouvir o galo cantar e não sabe de onde vem. E isso se aplica para qualquer técnica. Mas, no caso da pintura, há esse agravante de alguns séculos de história que são como uma novela: vai ter que olhar os capítulos anteriores por que se não você vai realmente achar que descobriu a pólvora – e essa pólvora eu acho que nem existe mais… essa pólvora hoje em dia é contar essa boa mentira. E eu gosto muito da ideia da pintura estar morta, e me lembra até uma fala do Zerbini que, mais ou menos, disse que a pintura está morta mas que gosta quando está sentado na sala e sente aquele calafrio como se fosse um espírito passando, esse espírito que já morreu, causando um arrepio nas pessoas que estão nessa casa. É alguma coisa desse gênero. Mas é isso! A pintura morreu, legal. E é legal que ela esteja morta. De vez em quando ela aparece e nos assombra – e quando ela nos assombra é por que alguém conseguiu fazer uma boa pintura.

3 thoughts on “Entrevista com Daniel Lannes”

  1. Li tudinho. Não sou pintora. Sou estudante do gênero literário ‘crônica’. Caí aqui por acaso em busca do conceito de mimetismo. Mas a entrevista, ainda que leitura longa, foi ficando muito interessante, cada vez mais interessante, interessante do começo ao fim. Muito aqui dito sobre pintura, se aplica à crônica, que afinal, não deixa de ser um quadro. Vários quadros com um mesmo tema,levando à uma exposição, equivaleriam à uma coletânea de crônicas (livro). Leitura de todo prazerosa! Foi como se eu estivesse presente à entrevista, anotando tudo que se falava… Deixo um abraço, sendo muito grata.
    Auri

  2. Muito obrigada pela linda mensagem. Literatura, pintura, teatro, dança, música… a arte nos conecta independente do suporte e da disciplina. Um grande abraço! Daniela

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