Coletivos Artísticos como Capital Social

Coletivos Artísticos como Capital Social*
Por Daniela Labra

* Publicado em Revista Dasartes n. 5.  Agosto, 2009

Nesta recente fase pós-crise global, o fazer colaborativo é um assunto quente. Ainda que iniciativas do tipo comecem a se configurar como uma alternativa impactante aos modos de produção e circulação de bens e de subsistência vigentes, o trabalho solidário ou cooperativo já se confirma como um modelo que pode nos conduzir, num futuro incerto, a uma sociedade algo mais justa.

As formas colaborativas começam a receber atenção especial dos meios acadêmicos nos anos 1990, quando surge a expressão “capital social”. Em síntese, “capital social” refere-se aos sistemas horizontais de participação civil, que podem ser associações comunitárias, cooperativas, grêmios esportivos, partidos políticos etc. As características centrais dessas redes de intercâmbio social são confiança, cooperação e reciprocidade, sendo que esta última, quando generalizada e assídua, é um componente altamente produtivo porque facilita a solução dos dilemas da ação coletiva.1

No campo da arte, os coletivos também irrompem no final dos anos 1990, e o teórico Ricardo Rosas aponta que isso é sintoma de uma mutação que está acontecendo tanto na esfera tecnológica como na social: “uma palavra-chave de todos estes coletivos é a colaboração. Espécie de buzzword, atualmente a colaboração e termos irmãos como livre-cooperação, comunidade, interação e rede são senhas para uma transformação que está se dando em escala global”.2 Ainda que a tecnologia não seja o fundamento básico destes grupos, é por meio dela que se dá a dinâmica de ação e propagação das atividades na vida real.

Os coletivos artísticos, como as organizações civis, são redes de trabalho e de relações. Eles hoje abundam e não se limitam apenas a questionar o lugar e a função da Arte. Grupos atuantes em 2009, como PORO, Laranjas, Frente 3 de Fevereiro, RRADIAL, Filé de Peixe, entre outros, realizam ações em espaços públicos e artísticos, e tanto focam na crítica ao sistema institucional da arte como em questões éticas, políticas e sociais. Diferentemente de organizações ativistas militantes, alcançam o tom crítico pela experimentação poética.

Do passado recente, destacam-se como paradigmas da atuação dos coletivos de hoje conhecidos movimentos e grupos como: os Futuristas, Dadaístas, os Surrealistas, Situacionistas, Novos Realistas, Fluxus e Art & Language, além de iniciativas em outras áreas, como, por exemplo, o Living Theater e os Panteras Negras. No Brasil, localizamos o movimento Antropofágico, os Concretistas, os Neoconcretos, Grupo Rex, A Moreninha, 3 Nós 3, Tupi não Dá, entre outros.

Como hoje, cada um destes grupos tinha modos operacionais e intenções distintas. O Futurismo e o Situacionismo, por exemplo, possuíam uma plataforma radical e pregavam a antiarte (desprezo pela ideia burguesa que forjou o tal objeto aurático). Já o Surrealismo, e mesmo o Neoconcretismo, estavam mais preocupados com a experimentação artística e com a exploração de novas relações entre obra, artista e espectador. Outros grupos criticavam até mesmo a noção de obra como algo essencialmente visual (Art & Language).

No entanto, um traço forte que une a maioria dos coletivos artísticos atuais, a abolição da autoria individual e de um líder, começa a se delinear como plataforma apenas nos anos 1980. Só então é que o mentor intelectual do grupo passa a ser a coletividade, tal como vemos hoje em dia. Uma boa tradução da ideia de diluição do autor é Luther Blissett, uma entidade libertária surgida no final dos anos 1990, encarnada por pessoas no mundo todo que executam textos e atos públicos com esse nome. A existência de Blissett é um fenômeno possibilitado pela internet e reflete também o espírito da Mídia tática ou Mídia ativismo – que vem a ser a criação coletiva na esfera da cultura livre digital.

Além de promoverem ações estéticas e políticas no espaço social, os coletivos também respondem a um problema do mercado: falta instituição para tantos artistas. Diante deste fato, eles realizam exposições e vendas em paralelo ao circuito de galerias e curadores mainstream. Organizam seus próprios eventos, escrevem seus textos e anunciam suas ações em blogs, twitter, redes de relacionamento etc. E, desse modo, vão construindo seu próprio canal oficial para a circulação de arte.

Tamanha é a diversidade de discurso e atuação dos coletivos artísticos que apenas a luz da crítica de arte não basta para compreender como e por que se configuram. Sendo assim, encerro este texto com mais sociologia, na certeza de que esta pode explicar melhor do que a filosofia estética por que este modelo de trabalho tem atraído tantos artistas, incluindo os que acreditam que é desorganizando que se pode organizar:
“Os sistemas horizontais de participação dão positivas contribuições à ordem social e à maior eficiência da sociedade ao facilitarem ações coordenadas, devido a um melhor fluxo da comunicação e informação, e possibilitam a realização de objetivos que de outra maneira seriam inalcansáveis. Como resultado virtuoso, reforçam a confiança, a cooperação e a solidariedade entre os indivíduos. Resumindo, os sistemas horizontais de participação asseguram futuras colaborações, contribuem para o melhor desempenho das instituições do governo e do mercado e fortalecem a democracia”.3

Notas:
1 LABRA, M. E. Capital social y consejos de salud en Brasil. ¿Un círculo virtuoso? Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 18, n. Suplemento, p. 47-55, 2002.
2 ROSAS, Ricardo. Nome: Coletivo; Senha: Colaboração. Disponível em: <http://www.rizoma.net/interna.php?id=170&secao=intervencao>.
3 LABRA, M. E.; FIGUEIREDO, J. Associativismo, participação e cultura cívica. O potencial dos conselhos de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, v. 7, n. 3, p. 537-547, 2002.

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