Arte Brasileira de Quem?

Jonathas de Andrade "40 Nego Bom é 1 real" [2013]
Jonathas de Andrade. 40 nego bom é 1 real, 2013

Na Copa as ruas ficam cheias de verde-e-amarelo e o brasileiro orgulha-se de sua nacionalidade. Futebol, dizem, é coisa nossa e o estilo do Brasil é ainda distinto. Em artigo recente neste caderno, Arthur Dapieve citava a importância que geralmente é dada no meio cultural à nacionalidade de uma obra ou autor, para então comentar como no esporte é nostálgica a noção de um estilo nacional de jogar. Uma vez que nos anos 1980 a globalização internacionalizou o mercado de trabalho e os times, os estilos foram se homogeneizando, e hoje insistir em um futebol à brasileira não faria mais sentido posto que pode-se, por exemplo, encontrar características sul-americanas em jogadores europeus e vice-versa.

Nas artes, a questão de uma identidade nacional pode trazer discussões parecidas. Em um sistema cultural globalizado que assiste à mistura e homogeneização de estéticas desde o final dos anos 1980, apontar características exclusivas da arte brasileira é no mínimo complicado.

Nos anos 1940,as pinturas de Portinari eram a imagem oficiosa da arte moderna do Brasil, e correspondiam à expectativa por exotismo e exuberância tropical de diretores de museus dos países centrais. Tal situação foi mudando aos poucos, até que nos anos 1990a produção estética das nações periféricas começou a ganhar relevância nos centros hegemônicos, levando a arte do Brasil a entrar em sua fase de inserção internacional, ainda dentro do rótulo genérico de arte latinoamericana. É apenas nos anos 2000 que a arte brasileira contemporânea ganha um espaço próprio no circuito estrangeiro, graças a iniciativas institucionais e de mercado beneficiadas também pela emergência econômica do país no cenário global. Desde então, muitas exposições de arte brasileira no exterior tornaram mundialmente conhecidas, de modo nem sempre muito consistente,a antropofagia modernista,o neoconcretismo e o tropicalismo como marcos de transformaçãocultural e inovação estética no país. Hoje esses movimentos culturais são apresentados por teóricos e curadores brasileiros e estrangeiros,como os fundamentos da arte contemporânea brasileira, e constróem o discurso histórico que sustenta a sua internacionalização. Nesse processo, muitas leituras curatoriais estrangeiras apostaram, nas últimas décadas, em noções como organicidade, sensualidade, exuberância, alegria e espontaneidade da forma para apresentar ou definir a nossa produção artística. Exemplo disso seria a gigantesca mostra Brazil:Body and Soul, levada ao Guggenheim de Nova York em 2001 que, segundo críticos, mais parecia uma empreitada promocional turística.

Nas festividades da Copa, o ilustrador Romero Britto ganhou o status de representante oficial da arte nacional com seus desenhos coloridos, que simbolizam alegria e união entre as pessoas, de acordo com a FIFA. Se por um lado eles podem ser boas estampas para os rentáveis produtos do torneio, por outro afirmam alguns clichês que a arte contemporânea brasileira vem questionando há mais de quatro décadas.

Em tempos de identidades culturais múltiplas e transitórias, o artista brasileiro contemporâneo, quando traz o assunto da identidade nacional, prefere problematizá-lo a reproduzir de modo acrítico supostos traços característicos. Trabalhando em sintonia com outras narrativas globais ele atua, individual ou coletivamente, em diálogo com diferentes culturas e referências estéticas, políticas e sociais, e tem na arte uma plataforma de reflexão para assuntos que não estão confinados a uma agenda local. A afirmação de um estilo nacional na arte nos leva a uma discussão anacrônica, desnecessária em um cenário de mercados globalizados onde podemos localizar temas brasileiros na obra de artistas japoneses, ou elementos do leste europeu na pintura de cariocas. Assim como o futebol, a arte contemporânea brasileira está no mundo representada por artistas que dispensam o passaporte para afirmar a qualidade de sua produção – ou do seu jogo.

* Publicado originalmente no Jornal O Globo, Segundo Caderno, 30/06/2014.

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